terça-feira, 21 de dezembro de 2010

OS ÁSANAS SEGUNDO PATAÑJALI


OS ÁSANAS SEGUNDO PATAÑJALI


por Pedro Kupfer



Todos os praticantes nos deparamos, cedo ou tarde, com a definição clássica que o sábio Patañjali dá sobre ásana no Yoga Sutra ('Aforismos do Yoga'), texto seminal desta escola de filosofia. Ele afirma que 'ásana é a postura, firme e confortável' (sthirasukham ásanam, YS,II:46). No entanto, alguns yogis ficam confusos sobre como deveria ser interpretada esta afirmação, uma vez que não são dados maiores detalhes nesse importante texto. Essa confusão diz respeito ao equilíbrio entre os dois adjetivos que este sábio usa para qualificar as posturas do Yoga. Como encontrar a igualdade de forças entre firmeza e conforto? Como evitar cair na acomodação ou nos deixar arrastar pelo excesso de rigidez?
Acredito que, para encontrar a maneira correta de interpretar esse ensinamento, devamos ir até a origem da questão: sthira significa firme, sólido. Por outro lado, há várias formas de definirmos sukham: felicidade, algo fácil, fluido ou agradável. Na frase do Yoga Sutra, percebemos que o autor coloca primeiramente o termo sthiram. Nao há dúvida, portanto, sobre o fato de que devamos construir o ásana (seja qual for a sua interpretação dessa palavra), primeiramente, da maneira mais firme. Somente depois vem sukham, o conforto. Sukham não pode ser mole, uma vez que seria ilógico, ja que sthiram significa firme. Portanto, agradável, já que sukham significa mesmo felicidade, alegria, parece-me uma forma adequada de traduzir o termo.

O caminho do meio.
Interpretando isso desde o ponto de vista do Hatha Yoga, poderíamos considerar que na prática deveríamos aplicar de maneira balanceada ambos fatores: sthira e sukham, em partes equilibradas: nem muito para a rigidez, nem muito para a moleza ou a auto-complacência. O caminho do meio, como ensinou o filósofo budista Nagarjuna, sempre me pareceu o mais lógico. Você não quer se matar na prática nem, como professor, machucar ninguém.
No entanto, se você considera que a sua prática está muito rígida, pode ser que esteja faltando um pouco de sukham nela. Força, flexibilidade e concentração são elementos necessários na prática de Hatha, mas não apenas nela. Se você não aplicar algum grau de força ou concentração, não conseguirá nem sequer se manter em pé ou sentado.
Por outro lado, percebemos que alguns praticantes têm uma espécie de obsessão com a firmeza e a permanência, como se o sucesso na prática dependesse da capacidade de ficar por horas em alguma postura específica. Um tempo atrás conheci um professor que estava convencido de que a iluminação poderia ser alcançada através de uma permanência suficientemente longa a inversão sobre a cabeça, sirshásana.

2h de sirshásana = iluminação?
No livro Hatha Yoga, uma técnica de libertação, o célebre yogi estadunidense da década de 1940, Theos Bernard, coloca um depoimento sobre como foi instruído por seu professor indiano para aumentar progressivamente a permanência nessa posição até chegar a duas horas diárias. Como bem sabemos, o que vale para um yogi pode não valer para outros. É necessário termos bom-senso na hora de escolher nossas práticas.
Este depoimento de Bernard foi tomado pelo colega referido acima como um exemplo a ser copiado. Acontece que esta pessoa tinha uma fragilidade congênita na região cervical e, depois de alguns meses insistindo em fazer algo que o corpo dele não recebia mesmo bem, acabou por gerar uma tremenda lesão nos discos cervicais, que comprometeu não apenas a sua prática pessoal, mas igualmente alguns movimentos básicos do cotidiano, como girar a cabeça para os lados e deixou seqüelas que irão acompanhar a pessoa pelo resto da vida. Este é um exemplo de interpretação exagerada do termo sthira. Excesso de firmeza ou excesso de permanência, nem sempre serão benéficos para o praticante.

Algumas dicas.
Então, a idéia geral para aplicar o princípio sthirasukham à prática das posturas, seria observar cuidadosamente a respiração ao longo da prática. A respiração é o termômetro natural para filtrarmos e interpretarmos corretamente os sinais que o corpo nos envia incessantemente. Se ela estiver pausada, ritmada, uniforme e profunda, isso pode ser interpretado de duas maneiras: a) estamos no ponto de equilíbrio entre a estabilidade e conforto, ou b) poderíamos ir um pouco além no esforço. Se, investigando o limite desse esforço (seja na permanência, seja na intensidade), verificarmos que a respiração fica mais difícil, ofegante ou pesada, esse seria o sinal para desfazer o ásana ou para continuarmos permanecendo nele, mas de maneira mais suave.
Outros sinais de exagero na firmeza ou na permanência são o tremor do corpo devido ao excesso de rigidez ou falta de firmeza na postura, a ansiedade, a instabilidade emocional ou mental, ou a transpiração excessiva (não há mal em transpirarmos normalmente ao praticar no verão).
No outro extremo, uma prática excessivamente cuidadosa, suave ou lenta pode se tornar inócua para o praticante. No entanto, temos que compreender exatamente o que queremos dizer com prática excessivamente cuidadosa: por exemplo, algo que seja tremendamente fácil para um praticante na faixa dos 40 anos de idade e ativo fisicamente, pode ser impossível, desaconselhável ou até mesmo perigoso para um praticante sedentário na faixa dos 50 anos.
A questão, portanto, parece estar em evitar os extremos, e em renovar constantemente a capacidade de auto-observação, de maneira que a cada prática sejamos capazes de interpretar corretamente o que significa aplicar o esforço e a entrega em doses equilibradas. Cabe, nesse sentido, lembrar que o corpomente está sujeito a constantes mudanças ao longo da vida e que, conseqüentemente, é desejável fazer uma leitura diária e uma correta interpretação dos sinais que ele nos envia. Boas práticas e namaste!
Texto publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal. Visite o website da revista clicando aqui: www.eyoga.com.br. Texto retirado do site www.yoga.pro.br. Pedro Kupfer é professor de Yoga e Vedanta e edita o site atrás referido

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Shítkarí, o pránáyáma nas escrituras clássicas do Hatha Yoga


Shítkarí, o pránáyáma nas escrituras clássicas do Hatha Yoga

por Miguel Homem





“A prática continuada desta técnica [shítkarí] torna o yogi belo como o deus do amor, Kámadeva.” Hatha Yoga Pradípiká, II-54. Sugestivo?!


            Começo por deixar uma descrição simples do shítkarí pránáyáma, aquele que produz o som shí:
a)         Fechar a boca, com os dentes juntos ou muito próximos, os lábios entreabertos e a língua levemente encostada por trás dos dentes (variações em relação à posição da língua são comuns);
b)         inspirar pela boca, fazendo o ar passar por entre os dentes e a língua;
c)         reter o ar e fechar a boca;
d)        expirar pelas narinas.

            Este pránáyáma, a par do shítalí, é um dos poucos em que se inspira pela boca. Normalmente a inspiração é sempre feita pelo nariz, o que permite que o ar através da passagem pelas narinas seja aquecido e limpo antes de entrar nos pulmões. Quando se respira pela boca os pulmões não têm esta protecção e, por este motivo, a prática de pránáyámas com inspiração pela boca deve ser feita em locais limpos, não poluídos e com a temperatura do ar agradável (e nunca quando está frio). Assim, este exercício não deve ser praticado por pessoas com problemas respiratórios como asma ou bronquite crónica.
Atribui-se a este exercício o poder de arrefecer o corpo, eliminar a fome e a sede. Também por isso deve ser praticado sobretudo no Verão. Em função do efeito de arrefecimento do corpo, o pránáyáma tende a induzir um estado de relaxamento.
Quando se usa o bhastriká pránáyáma no Verão, o que tende a aquecer ainda mais o corpo, o shítkarí é usado muitas vezes para contrabalançar aquela tendência e devolver o equilíbrio ao organismo.
Existem algumas variações quanto à posição da língua neste pránáyáma durante a inspiração. Foi-me ensinado pousar a língua entre os dentes (superiores e inferiores) ou nos dentes incisivos superiores. No primeiro caso, os dentes acabam por se afastar ligeiramente e a língua sobressai um pouco. Swami Satyananda Saraswati sugere ainda a hipótese de se deixar a língua dobrada para trás a pressionar o palato macio.
Por fim, uma palavra para a atenção que se deve manter na língua e sobre a retenção com ar (antar kumbhaka) que não necessita ser muito prolongada.

Vejamos, então, o que nos diz a Hatha Yoga Pradípiká[1]:
“Ao inalar produz-se um som sibilante, mantendo a língua entre os dentes; depois, exala-se pelo nariz. A prática continuada desta técnica torna o yogi belo como o deus do amor, Kámadeva.
Assim, ele se torna atraente para as yoginís, controla as suas acções, não sente fome, nem sede, nem se vê afastado pela sonolência ou pela preguiça.” (II-54,55)

            Aqui está a solução para muitos yogís com problemas de coração. E, à boa maneira yogí, de graça, acessível a todos e sem necessidade de mais feromonas além das que trouxeram de fábrica :)!
            Mas vejamos outro significado possível de Kámadeva, mais condizente com o sentido do Yoga. A palavra káma significa literalmente desejo, vontade, prazer, amor, gozo. Já a palavra deva traduzida comummente por deus, também tem o significado de título honorífico e pode significar “vontade de exceder ou superar”.

Assim, a palavra kámadeva pode significar aquele que supera o seu próprio desejo.

E supera não no sentido de rejeição mas no sentido que é livre do apego a ele. Esse é o Mestre, tão bem com, como sem...
            Vejamos agora outro significado possível para “ele se torna atraente para as yoginís”. Do original consta yoginí chakra sammányah que também se poderia traduzir como aquele que é respeitado e honrado pelo chakra de yoginís. A palavra chakra, de conhecimento mais comum, tem como um dos seus significados redemoinho de energia. Yoginí tem o significado comum de mulher que se dedica à vida de Yoga, mas no contexto específico das tradições tantricas, como é a do Nátha Sampradaya[2], também pode significar shakti, a energia. Como escreve o Swami Muktibodhananda[3]:

“O chakra de yoginís simboliza o funcionamento do corpo denso e subtil, as funções da mente e a integração com o Ser. Toda a nossa existência é controlada ou operada pelas várias formas de shakti, ou uma yoginí ou deví específica.
Assim, é dito que através da prática de shítkarí todo o corpo fica sob o domínio do praticante.”

           
Se analisarmos o que o texto nos diz em seguida, talvez encontremos um apoio:
“Com esta prática consegue força física e torna-se um mestre de Yoga, livre de todas as misérias terrenas.” (II-56).
A explicação para este efeito associado ao shítkarí pode estar exactamente no seu efeito refrescante. Como se sabe, a paixão e o desejo (sobretudo sexual) geram calor no organismo. Assim, o pránayáma seria uma forma de agir sobre a tendência latente. Não que exista algum mal na paixão e no desejo – não há – a haver mal ele está em ser escravo da paixão e dos desejos.
O texto diz mesmo bhavet sattvam cha dehasya sarvopadravavarjitah, que também se pode traduzir por “o sattva do seu corpo torna-se livre de todas as perturbações”. Assim, livre de perturbações, sattva[4], o equílibrio, repousa em si mesmo. Segundo Vyása, no seu comentário ao segundo dos sútras de Patañjali, o atributo de sattva é pra-khyá ou khyáti, a iluminação ou conhecimento da realidade. Então compreende-se bem porque o praticante que se mantem em sattva sem perturbações se torna um Mestre de Yoga.

Dos três textos que temos vindo a estudar – Hatha Yoga Pradípiká, Gheranda Samhitá e Shiva Samhitá - apenas a Hatha Yoga Pradípiká se debruça sobre o shítkarí pránáyáma. Os restantes textos limitam-se ao shítalí pránáyáma, que abordaremos noutra oportunidade.
Introduz-se, assim, outro texto à guiza de curiosidade: a Hatharatnávalí de shrínivásasa. Este é um importante texto do Hatha Yoga, mas não tão conhecido quanto os acima referidos. Estima-se que tenha sido escrito entre 1625 e 1695. Sabemos que o seu Autor era versado nos Vedas, Vedánta, Tantra, Nyáya e Yoga.
Vejamos então o texto:
“Deve-se inspirar sempre pela boca produzindo o som sít, reter o ar e exalar pelas narinas. Com esta prática o yogí tonra-se o kámadeva. Ele é respeitado pelo yoginí-chakra, torna-se capaz de criar e destruir e não sofre de fome, sede, sono e sonolência.
Mais ainda, através desta prática, o eminente yogí torna-se preparado fisicamente, permance livre dos sofrimentos mundanos e supera-se em vida.” II-16-18[5].

            Os originais sânscritos são quase iguais e sem dúvida shrínivása ter-se-á inspirado no texto de Svátmáráma Yogendra (a Hatha Yoga Pradípiká). A Hatharatnávalí pouco acrescenta em relação ao escrito anterior. Neste sentido, serve-nos mais como confirmação do que já antes havia sido postulado.
        


[1] Svátmáráma Yogendra, Hatha Yoga Pradípiká, Tradução de Pedro Kupfer, Instituto Dharma-Yogashala, 2002, Florianópilis, Brasil.
[2] Nátha sampradaya é a tradição original das escolas de Hatha Yoga e por isso aquela a que pertenceria Svátmáráma Yogendra, o autor da Hatha Yoga Pradípiká.
[3] Svátmáráma Yogendra, Hatha Yoga Pradípiká, Tradução e comentário de Swami Muktibodhananda, Yoga Publications Trust, 2004, Munger, Bihar, Índia, pag. 246 e 247. Tradução para o português do autor.
[4] Sattva é um dos gunas (guna significa qualidade, propriedade ou atributo) da Prakriti (mundo manifestado, matéria, natureza, substância cósmica). Os outros dois são tamasrajas. A diversidade e a complexidade da natureza devem-se à interacção, alteração e às variações desses três elementos. Assim, tamas significa inércia; rajas, movimento e sattva estabilidade. As suas funções são, respectivamente, a de limitar, a de ativar e a de manifestar a consciência através dos seus mais variados veículos. O guna sattva actua no homem como um estado de compreensão, satisfação, tranquilidade, reflexão, alegria e felicidade.
[5] Srínivásayogí, Hatharatnávalí, Tradução de Dr. M. L. Gharote, Dr. Parimal Devnath e Dr. Vijay Kant Jha, Lonavla Yoga Institute, 2002, Lonavla, Índia, pag. 47. Tradução para o português do autor.

sábado, 18 de dezembro de 2010

DHARMA SEM DRAMA



 DHARMA SEM DRAMA

por Pedro Kupfer





Ouvimos muito falar em dharma. Usamos esta palavra com alguma frequência nas conversações sobre Yoga, mas às vezes, percebo que o que alguns compreendem como sendo dharma é diferente do que outros pensam ou falam. Assim, decidi escrever este texto como uma maneira de contribuir para a compreensão desse importante conceito, à luz do que aprendi com meu mestre, Swami Dayananda. A palavra dharma deriva da raiz dhr, que quer dizer “manter unido”. Então, dharma tem o sentido de preservar, de manter a coesão entre as pessoas e as coisas. Dentre outros significados, o termo aponta para as ideias de ordem, lei, filosofia, bem comum, ética, religião e conduta.
Há duas dimensões distintas de dharma: a universal e a pessoal. No primeiro sentido, dharma é a força de coesão que sustenta a criação, manifestada na forma das leis naturais: a da gravidade, a da preservação da massa e as demais e ainda, na forma das leis humanas que regem a sociedade e possibilitam uma convivência harmoniosa entre as pessoas. Se formos pensar nessa dimensão do dharma universal, poderíamos defini-lo como não fazer aos demais aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco. O segundo sentido desta palavra, está vinculado com a conduta individual e funciona como uma espécie de bússola para pautar as nossas ações. Esse tipo de dharma é chamado svadharma, seu próprio dever.

Meu dever.
Algumas pessoas, ouvindo por primeira vez o ensinamento da Bhagavad Gita, que acontece à beira de um campo de batalha, tendem a pensar que o dharma pessoal seja algo ao mesmo tempo grandioso e terrível como o destino do príncipe Arjuna, que se vê na contingência de matar seus próprios parentes e amigos. Porém, o svadharma não é algum destino maravilhoso ou fado funesto que possa estar nos aguardando ao virar a próxima esquina.
Na Bhagavad Gita (III:35), o deus Vishnu, encarnado como Krishna, instrui Arjuna sobre o próprio dharma: “Mais vale cumprir o próprio dharma, ainda que de forma imperfeita, do que cumprir de maneira perfeita o dever de outrem. É melhor sucumbir desempenhando seu próprio dever. É perigoso cumprir deveres alheios”. Esta frase, dita no momento em que inicia uma grande guerra onde muitos irão morrer, soa de fato como algo heróico e aterrorizante. Assim, naturalmente, podemos pensar que talvez svadharma seja isso: um destino grandioso que precisamos encontrar, ou um sentido oculto para a nossa vida que devemos achar antes que seja tarde demais, e que talvez seja perigoso.
As palavras de Krishna devem ser interpretadas dentro do contexto em que foram ditas. De fato, o dever de Arjuna como guerreiro e comandante de um exército é lutar e se for preciso morrer, realizando seu dharma. Não obstante, se formos considerar que a imensa maioria de nós não tem esse destino glorioso e assustador, poderíamos definir o svadharma noutros termos, muito mais humildes e próximos do nosso cotidiano, porém que a aplicam tanto ao caso de Arjuna quanto ao nosso: svadharma é fazer seu próprio dever, fazer aquilo que deve ser feito. Nada mais. Nada menos. OK, pode pensar o amigo leitor, mas o que isso exatamente significa?

Qual é meu dever?
Quando Krishna, no papel do professor ideal, diz para Arjuna que é melhor falhar realizando seu próprio dever do que acertar cumprindo o dever dos demais, ele quer dizer que é desejável usar da maneira mais adequada o livre arbítrio do qual todos nós, enquanto humanos, somos dotados. Noutras palavras, não devemos escolher dominados pelos nossos gostos ou aversões, mas pela visão daquilo que é certo ou errado. O certo e o errado são muito fáceis de se definir: certo é aquilo que nós gostaríamos que os demais fizessem conosco. Errado é aquilo que não queremos que os outros nos façam.
Estas afirmações nos levam para a seguinte reflexão: enquanto pessoas maduras, nós só devemos escolher o que é certo, quando colocados numa disjuntiva. Porém, na dinâmica da vida, onde as nuanças do cinza são infinitamente mais variadas que o negro desta tinta impressa sobre o branco do papel da revista, isto deve ser corretamente compreendido. Às vezes, aquilo de que gostamos coincide exatamente com aquilo que é correto e aquilo de que não gostamos se encaixa com o que é errado. Numa situação dessas, não precisamos nem pensar, apenas agimos de maneira espontânea e pronto: já estamos realizando nosso svadharma. No entanto, noutros momentos essa situação não se apresenta de maneira tão clara assim e é preciso agir de maneira deliberada.

Ações espontâneas, ações deliberadas.
Uma vez, estávamos numa estrada em Bali, voltando para casa muito tarde na noite, depois de nos despedir de um amigo que voltava para o Brasil. Quando paramos o carro num cruzamento importante, testemunhamos um acidente espetacular: duas motos bateram em alta velocidade e três pessoas saíram patinando pelo asfalto por muitos metros. Depois do barulho e as faíscas, apenas silêncio e três corpos no asfalto no meio da noite. Estávamos cansados, era tarde, não havia ninguém olhando, e nós poderíamos simplesmente ter seguido em frente. Mas, nesse caso, o nosso desejo não coincidia com aquilo que era certo: se fossem nossos corpos estendidos na estrada e não os daquelas pessoas, gostaríamos que os outros seguissem indiferentemente seu próprio caminho?
Não havia opção possível. Essa era a hora da ação deliberada: contrariando o desejo dos nossos corpos cansados por chegar logo na cama, paramos o carro no meio da estrada, de maneira que os poucos carros que passavam não atropelassem os acidentados e começamos, a examinar os corpos com cuidado. Os três, aliás, muito jovens, tinham um forte cheiro de álcool e, para nossa surpresa, estavam quase inteiros: alguns arranhões profundos, um osso quebrado aqui e acolá, mas nada de crânios esmagados, membros decepados ou fígados arrancados. Incrivelmente, os três dormiam profundamente. Estavam muito bêbados, mas tiveram aquela sorte louca dos que estão totalmente entregues às circunstâncias.
Agimos desde a certeza de que gostaríamos de ter a solidariedade dos demais, se a precisássemos numa emergência como essa. Com a ajuda de um policial que apareceu um tempo depois numa motinho (o que foi bom, pois dividimos a responsabilidade com ele, que assumiu as decisões), carregamos os três no porta-malas e o assento de trás do nosso jipe alugado e fomos para um hospital. O caminho foi longo. A Ângela estava enjoada com o cheiro do sangue e álcool e começou a passar mal. Eu estava com um nó na boca do estômago, por causa da tensão e o receio de ter feito algo errado, pois sabia perfeitamente que não devemos mexer em corpos de acidentados.
Mas havíamos seguido as instruções do policial para transportar os corpos, já que a situação era crítica. Conhecendo bem a Indonésia, tanto o policial quanto nós sabíamos que, se deixássemos os garotos deitados no asfalto do jeito que estavam, seriam atropelados antes da chegada de uma ambulância, o que poderia demorar horas, ou nem sequer acontecer. Eu também pensava se, na chegada no hospital, as pessoas não iriam nos acusar de ter atropelado os jovens, e que isso poderia complicar muito a nossa situação, apesar da boa intenção com que tínhamos agido. Mas nada disso aconteceu: na chegada, um enfermeiro que mais parecia um lutador de sumô mal-encarado, jogou descuidadamente os garotões em três macas e nos dispensou sem muita cerimônia. Fomos dormir tranquilos e aliviados.

Por que dharma?
Qual é meu ganho, se seguir o dharma? Qual é o efeito? Por que deveríamos agir dentro dele? Por algo muito especial: quando eu sei o que devo fazer, quando conheço meu papel na sociedade, fico tranquilo. Quando consigo discernir o certo do errado, e escolher deliberadamente o que é certo, mesmo a pesar do meu próprio prazer ou conforto, me fortaleço imensamente. Quando minhas ações estão alinhadas com o bem comum, fico em paz pois encontro o meu lugar na ordem das coisas. Cabe lembrar que a palavra dharma significa, dentre outras coisas, ordem, harmonia.

Svadharma nos relacionamentos.
Esses deveres que chamamos dharma, por sua vez, constituem direitos, quando olhados desde o outro lado. Se eu faço aquilo que é certo, o que é certo é meu dharma, meu dever. Do outro lado dessa afirmação há outra pessoa ou outras pessoas: o meu cônjuge, a minha família ou a sociedade. Ou seja, o meu dever em relação ao meu cônjuge se torna o direito dele ou dela. O meu dever em relação à minha família é o direito dela. O meu dever para com a sociedade é o direito dela.
O direito do cidadão é (ou deveria ser) garantido pelo Estado, que representa (ou deveria representar) o dever da sociedade em relação ao indivíduo. Muitas vezes gritamos alto para reivindicar nossos direitos, mas esquecemos de ter o mesmo zelo na hora de cumprir os nossos deveres. Direitos e deveres relacionais, familiares e sociais são relativos, e dependem de tempo, lugar e circunstância, mas a regra de ouro é sempre seguida: não devemos deixar de fazer pelos demais o que esperamos que eles façam por nós. Os detalhes mudam de geração para geração, ajustando-se aos tempos e ao estágio de maturidade de cada sociedade. A essência do dharma permanece.
Assim, temos a possibilidade de realizar ações espontâneas e ações deliberadas. Svadharma é, agindo deliberadamente, fazer aquilo que é correto. Este é um dos aspectos do Karma Yoga. É necessário pontuar a importância da ação deliberada pois, na maior parte das vezes, o meu desejo contradiz o que é certo. Ou, como diz aquela velha música do Roberto Carlos: “tudo o que gosto é imoral, ilegal ou engorda”. Esse livre arbítrio para escolher entre o prazeroso é o certo é uma das coisas que nos faz humanos.

Qual é o dharma do indivíduo em relação ao Todo?
Um dos pontos centrais deste ensinamento é a compreensão da relação intrínseca entre o indivíduo e o Todo. O indivíduo é chamado vyashti, o Todo, Samashti. Se eu não compreender essa relação, não poderei compreender as demais. E, para compreender essa relação que devo manter com o Todo preciso, primeiramente, compreender quem sou e o que é o Todo. Assim o esteio fundamental do ensinamento do Yoga é que o indivíduo é idêntico ao Todo. Em poucas palavras, o Todo é a inteligência que mantém a coesão das coisas e os seres vivos, que é intrínseca à criação. O indivíduo é você, enquanto ser humano encarnado. Perceber essa identidade é ter moksha, liberdade, já que ao conhecer a nós mesmos como completude, todas as ideias equivocadas que possamos ter em relação à nossa auto-identidade são eliminadas. Assim, vivemos em paz e felizes.

Qual é o meu dharma em relação a mim mesmo?
Cada um de nós nasce dotado de alguma habilidade especial. Naturalmente cria-se um conflito na adolescência em relação às escolhas que a pessoa deve fazer, já que isso vai definir muitas coisas no seu futuro. Às vezes, esse conflito da adolescência se estende à juventude e à fase adulta Assim, algumas pessoas chegam aos 30 ou 40 anos de idade sem ter claro o que querem para si na vida. Se esse for meu caso, ao invés de me angustiar por não ter clara essa vocação profissional, preciso ficar atento às coisas que a vida vai me revelando, aos caminhos que se abrem à minha frente, e escolher aqueles que, sendo prazerosos ou não, estejam em harmonia com o bem comum. Naturalmente, irei escolher aqueles que me forem mais agradáveis, mas não preciso me angustiar por não ter uma vocação meridianamente clara. O que verdadeiramente importa, independentemente das ações que faço, é me manter fiel  aos próprios princípios. Aqueles valores dos quais não abro mão de jeito nenhum, são também meu svadharma.

Qual é o dharma do marido em relação à esposa?
Digamos que eu seja feliz e a minha esposa não. Como poderia eu desfrutar da minha felicidade vendo ela sentada num canto da casa, triste e chorando? Se sou casado, a felicidade da minha esposa é a minha felicidade. Meu dever, enquanto marido, é criar condições para a felicidade da minha mulher e não para fazê-la sofrer. Isso significa cultivar compaixão, fazer o outro se sentir valorizado, mostrar interesse, afeto e carinho em todos os momentos. Então, mesmo que seja em meu próprio benefício, eu deveria cuidar muito bem da felicidade da minha esposa. Obviamente, essas atitudes precisam ser recíprocas para que a relação flua da melhor maneira.

Qual é o dharma dos filhos em relação aos pais?
O dever dos filhos em relação aos nossos pais é cuidar deles. É conseguirmos uma forma de comunicação que seja expressão da gratidão que temos por eles terem feito a coisa certa ao nos educar. Provavelmente, se você é um adulto que está lendo esta revista, seus pais fizeram a coisa certa ao lhe ensinar os valores que lhe trouxeram até onde você está agora. Mesmo se tivermos alguma lamúria ou cobrança para lhes fazer, devemos pensar neles com reverência e reconhecimento. Essa gratidão não deveria ficar apenas no plano dos pensamentos ou sentimentos, mas precisa estender-se às ações: demonstrar agradecimento, cultivar a paciência ou dedicar um tempo diário ou semanal a estar e desfrutar com eles, principalmente quando eles estão na terceira idade, são boas maneiras de cumprir nosso dharma em relação aos nossos genitores.

Qual é o dharma dos pais em relação aos filhos?
O dever dos pais em relação aos filhos é prover as condições necessárias para que possam crescer e desenvolver suas habilidades da maneira mais adequada. Assim, é importante que, como pais, demos aos filhos a liberdade para que eles desenvolvam as próprias vocações. Outro dos deveres dos pais é prover amparo e dar aos filhos uma educação com valores que lhes permita compreender que, mais que consumidores, devem crescer como contribuidores para uma sociedade melhor. Noutro plano, se formos pensar na vida de Yoga, o dever dos pais é lembrar aos filhos que existem aspectos da vida muito mais importantes do que simplesmente ter sucesso, prosperidade, prazeres ou confortos materiais sem, é claro, negar a importância desses fatores.

Qual é o dharma da sogra em relação à nora?
A sogra deveria, também em seu próprio benefício, dar à nora total liberdade para que ela seja como é, e para que possa viver feliz com seu marido. Toda sogra deve ter sido nora em algum momento: pode acontecer que ela esteja projetando na nora as frustrações e ansiedade sofridas nas mãos da própria sogra. Muitas vezes, o problema da sogra nasce do sentimento de possessividade que ela nutre pelo filho. Havendo o filho nascido dela, sua tendência natural é pensar nele como uma extensão dela mesma. No entanto, o fato é que ninguém é apêndice de ninguém e a sogra deve ter cuidado para exercer o desapego em relação ao filho, em benefício da felicidade de todos.

Qual é o dharma do cidadão em relação à sociedade?
Embora não esteja de moda nestes tempos de corrupção dominante, tráfico de influência, desvio de recursos públicos e outros crimes praticados descaradamente à luz do dia por uma boa parte dessa inqualificável classe de políticos e governantes que temos que suportar no Brasil, isso não nos isenta de, como cidadãos, fazer a nossa parte. Isso não quer dizer apenas pagar mansamente os impostos, mas também levantar a nossa voz quando se fizer necessário, seja para protestar, seja para apontar ações necessárias para melhorar as condições de vida da sociedade.
É dever de todos, não apenas compreender o que está acontecendo na nossa localidade, mas igualmente participar ativamente, oferecendo soluções, se for o caso, para melhorar as condições da comunidade em que vivemos. Dentre outras coisas, cabe lembrar que um dos deveres do cidadão, em relação ao Estado, é justamente o de escolher bem os governantes e, se for o caso, ajudar os demais a fazer uma escolha esclarecida. Pense nisso nas próximas eleições.

Conclusões.
Bom, esta lista poderia se estender bastante mais, mas vamos parar por aqui, citando duas estrofes de um mantra védico chamado Svastipatha, que ilustra o que seriam esses direitos e deveres dhármicos numa sociedade harmoniosa:
Om. Que a prosperidade e o bem-estar sejam glorificados.
Que os governantes nos governem com retidão e justiça.
Que a sabedoria e o conhecimento sejam protegidos.
Que todos os seres, em todos os lugares, sejam felizes.
Om, que haja prosperidade para todos.
Que todos vivam em paz; que todos sintam a plenitude.
Que todos estejam bem; que todos sejam felizes.
Que todos estejam livres de doenças.
Que todos vejam o bem; que ninguém sofra.
Como acabamos de ver, o svadharma é realizado nas pequenas coisas do cotidiano. De vez em quando aparece alguma tarefa mais delicada, como aquele acidente em Bali mas, de modo geral, seguir o próprio dharma tem mais a ver com estar atento em relação às coisas que a vida nos coloca, e trilhar com cuidado os caminhos que estamos seguindo, do que em buscar alguma vocação ou destino glorioso.
Destino glorioso também é uma expressão que precisa ser bem compreendida: não estamos dizendo que isto que devamos nos resignar a ter uma vida medíocre ou cinza, mas sermos capazes de ver que, mesmo nas menores coisas do dia-a-dia, é possível vivermos a plenitude e a tranquilidade que nos dá o fato de saber que estamos fazendo a coisa certa. A questão que verdadeiramente importa não é se seremos famosos, ricos ou heróicos, mas se somos fiéis a nós mesmos e aos nossos valores, e se realizamos a nossa felicidade, independentemente do tipo de trabalho que fazemos. Namaste!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Ana Sereno entrevista Swami Dayananda sobre valores



Ana Sereno entrevista Swami Dayananda sobre valores






"Vairagya serve para te ajudar a tornares-te uma pessoa maior"


Em Março de 2010, durante o primeiro curso em Rishikesh, dedicado ao texto Pancadasi, tivemos uma vez mais a honra e feliz oportunidade de entrevistar Swami Dayananda. Como já se vem tornando hábito, fomos recebidos na sua casa, pelo seu bom humor e compaixão e expusemos as nossas questões às quais Swamiji respondeu com toda a sua clarividência. É com muito gosto, então, que partilhamos mais uma entrevista, desta vez sobre os valores universais, desejando que possa ser útil e esclarecedora para todos.


Existem alguns valores universais. Porque devemos segui-los? Porque alguém nos diz para fazê-lo, ou existe uma razão objectiva para tal?

Os valores não são universais porque alguém nos tenha dito. Se alguém nos tivesse dito não seriam universais. Sem que ninguém nos diga nada, temos valores que são universais. Isto vem de um simples facto inerente a qualquer organismo vivo, que é: querer viver e viver sem sofrer. Eu quero viver, não quero sofrer. Isto é um valor instintivo de todo o organismo vivo para que possa sobreviver. É um instinto de sobrevivência. Com os animais esse instinto pára por aí, está programado. Imaginem que uma vaca dá um coice a alguém e essa pessoa fica magoada, a vaca não sente qualquer arrependimento, ou culpa. Nós humanos também não queremos ser magoados, porque somos seres vivos, então temos o mesmo valor de que ninguém deveria magoar-nos. Mas enquanto seres humanos temos a capacidade para observar e saber que os outros também não querem ser magoados, é do senso comum. A vaca parece não saber isso, mas nós sabemos, observamos e sabemos. Então, se eu não quero ser magoado e os outros também não - um valor nasce. Assim sendo é universal, é um valor não ensinado. Todos os outros valores nascem desse valor porque se fores contra ele vais magoar as pessoas. Roubar, enganar, explorar - tudo isto magoa as pessoas. Logo existem valores derivados e existem valores primários, sendo que ahimsa - não magoar o outro - é um valor primário. Como tal dizemos que ahimsa é o valor primordial - paramodharma. A partir daqui já temos um conjunto de valores. Se alguém é compassivo, compreensivo, generoso, cuidadoso, valorizamos isso. Os outros também valorizarão isso em nós. Ainda assim, porque é que as pessoas vão contra os valores, se sabem que aqueles são os valores que formam uma estrutura comum? Os seres humanos têm a capacidade de escolha e assim sendo precisam de uma estrutura de valores comum - a tua escolha não me magoa, a minha escolha não te magoa. Então, se existe essa estrutura comum de valores, porque vou contra ela? Por uma razão: a pressão dos meus desejos, da minha ambição. O desejo gera pressão, essa pressão faz a pessoa comprometer os valores, o dharma, e por isso dizemos: não cedas à pressão - tayor vacham na agachet; não te deixes levar por essa pressão, a pressão do desejos, de diferentes tipos de desejos - raga-dvesha. E porque não, se tanto se fala em "Sobrevivência do mais forte"[1]? Eles podem bombardear-te, tu podes bombardeá-los, eles podem bater-te, tu podes bater-lhes, está tudo bem. Foi o que fizeram nos séculos passados. "Poder é razão" (trocadilho com a rima "Might is right", em inglês). Todos tentaram bater nas pessoas e ocupar os lugares, colonizá-los e tudo mais. Fizeram muitas atrocidades em nome do "Poder é razão". Muitas religiões apoiaram isso também, em nome da religião fizeram-no.
Assim sendo, o crescimento enquanto ser humano está na minha capacidade de agir conforme o dharma, inicialmente com resignação, deliberação e um grande sistema de apoio, depois espontaneamente. Por espontâneo entende-se que te tornas santo. Essa santidade é o crescimento de um ser humano, isso é ser espiritual. Dizemos que alguém é espiritual em relação a outra pessoa que não cresceu nesse sentido. Toda a gente tem de crescer nessa direcção e a partir daí crescer por sua própria iniciativa. Se não crescemos tornamo-nos pessoas emocionalmente atrofiadas. Não é por mais ninguém que eu cresço, é porque estou desenhado para crescer, logo devo crescer e tornar-me uma pessoa completa. Na minha própria auto-estima sinto-me muito feliz, na perspectiva dos outros também passo, mas não é esse o critério para o meu crescimento. Na minha própria estima vejo-me como livre de culpa e desse crescimento atrofiado e logo vivo bem comigo próprio.
A relação entre moksa e essa santidade, a relação entre viver de acordo com o valores e moksa é que apenas para esta pessoa existe moksa. Não entenderás que és o Todo se não fores compassivo contigo próprio. Eu sou ananda. Não posso sentir-me culpado e magoado e ver este conhecimento de que sou o Todo, não funcionará, é uma contradição, essa mente humana não consegue ver, esse ser humano não consegue ver isso. Logo, viver de acordo com o dharma e moksha estão altamente relacionados. Mesmo que uma pessoa não alcance moksha, será sempre uma pessoa virtuosa e isso, por si só, já é um dividendo, isso por si só já é crescimento e a partir daí moksha torna-se muito simples, é apenas um passo, é apenas aquela ligação - tat tvam - tu és isso, apenas essa ligação tem de ser feita, nada de especial.

Sobre kshanti, aceitação
Como agir quando nos é impossível aceitar um determinado comportamento de alguém em relação a nós? Deveríamos evitar relacionar-nos com essa pessoa ou confrontá-la?

Temos de estabelecer limites. Este valor existe para ti, mas também para a outra pessoa, quer ela o valorize ou não, deveria ser um valor para o outro também - kshantih. Então o que fazes? Acomodação é penas permitir que essa pessoa permaneça no seu espaço, "mantém-te no teu espaço mas sem me afectar". Estabeleço limites para mim e também para o outro. Nas relações interpessoais esta é a coisa a fazer - estabelecer limites. Às vezes é muito difícil, mas é possível. Podes dizer à outra pessoa "pára, a partir daqui não podes passar", ou "desculpa mas não consigo lidar com isto". Na sociedade ocidental dizem isto com muita facilidade, os indianos não, têm muita timidez e consideração - "o que irão pensar?" - têm estas preocupações em demasia. Lá (referindo-se ao ocidente) eles não se preocupam nada! (risos). Estive na Holanda e aquelas pessoas são tão claras e abertas. Temos mesmo de criar limites - arantih jana samsari.

Sobre aratih jana-samsadi,
A maioria de nós vive em sociedade. Onde está o equilíbrio entre uma interacção social saudável e ter tempo de qualidade para si próprio?

Tens de escolher que tipo de vida social vais viver. A vida social também ajuda a pessoa a crescer, no entanto, não pode ser um estilo de vida sem qualquer significado, que vá arrastando a pessoa indefinidamente. Não queremos que as pessoas sejam reclusas mas tão pouco que corram atrás de uma socialização que implique beber, dançar até altas horas da noite e toda uma variedade de outras coisas. De certa forma, parece que socializar passou a significar altas horas da noite. Temos de criar o nosso próprio círculo social. Organizar um jantar tranquilo e convidar os amigos. Mudar hábitos. Tu próprio inicias isso. E há muita gente que vai adorar ir. Desta forma, crias a tua própria sociedade, é assim que deve ser. Temos de criar o nosso próprio sistema de suporte, não podes esperar apoio num sistema social como falámos no início, porque serás arrastado para esse estilo de vida. Então criaremos a nossa própria sociedade e haverá cada vez mais gente nela. Com tempo, as coisas começarão a mudar. Por outro lado, existe o respeito pelo tempo de cada um, pela privacidade. Convidas as pessoas para fazerem um sat sang, uns bhajans, trocar perguntas e respostas e mesmo para dançar, sem beber, quando muito uns refrigerantes ou o que quer seja moderado nessa cultura. E pode ter-se também alguma música, que seja um pouco mais "séria" (risos). Então desta forma criamos a nossa própria sociedade e haverá muita gente interessada em começar uma vida assim, encontrarás essas pessoas porque há muitas que estão apenas à espera desse tipo de iniciativas.

Sobre vairagya, desapego
Swamiji pode explicar a diferença entre vairagya e egoísmo? Algumas pessoas, no ocidente, tomam um pelo outro. Por exemplo pensam que ter algum vairagya perante as relações é egoísmo.

Não há qualquer egoísmo, vairagya é desapego. Existe algum mal entendido em torno de vairagya, mas deve ser removido. Vairagya deve ser entendido da seguinte forma: se numa relçãao entre duas pessoas um dos parceiros diz "eu tenho desapego", não é muito boa ideia, não é deste vairagya que estamos a falar. Vairagya é perceber a ausência de conexão entre aquilo que fazes e aquilo que queres, isso é vairagya. Eu quero Moksha mas faço outra coisa qualquer, não há qualquer conexão. Mas vejamos um exemplo, numa relação um dos parceiros quer um filho e o outro não, aí está um problema. Aquele que quer o filho dirá ao outro que ele é egoísta e que só pensa na sua própria felicidade. Mas ter uma criança é vairagya. Se fazes algo, mesmo sendo aquilo que não queres, isso também é vairagya. Se o outro quer, nós fazemo-lo feliz, é a melhor coisa a fazer. E assim tornas-te maior. Vairagya serve para ajudar-te a tornar-te uma pessoa maior, não menor. Em nome de vairagya não podes tornar-te menor. Tens de dar. Assim sendo, fazes feliz a pessoa que amas. Já resolvi este tipo de questões entre casais tantas vezes... A mulher chega aqui e diz-me "eu quero um filho mas ele é espiritual e não quer", E eu pergunto ao marido: "o que tens a perder"? A paternidade é uma coisa muito boa para antharkarana shudhi. Fazer a outra pessoa feliz é o que vairagya é. Na tua vida há uma pessoa que amas e precisas dela para alimentar o teu ego, que espécie de vairagya é esse? É falso vairagya, mas acaba por ser visto com esse nome. Então, sê objectivo, se existem as condições para criar a criança adequadamente a decisão deve ser dos dois. Ambos têm de decidir "ok, vamos ter um filho". Se já não estiveres na idade certa, se houver algum risco envolvido, nesse caso não te incomodes com o assunto, mas se for seguro ter uma criança deves seguir isso. A paternidade é uma coisa linda. A mulher é desenhada para ser mãe, de outra forma todo aquele sofrimento por que passa, mês após mês, seria inútil, esse distúrbio hormonal e tudo o mais seriam um disparate. Elas têm de passar por tudo isto porque são desenhadas para a maternidade e o próprio sistema biológico quer isso. Até por volta dos 30 anos não se interessa, a partir daí o desejo começa e, por vezes, acaba por ser tarde de mais. Por isso dizem que se deve ser mãe quando é saudável. Estas pessoas modernas preferem ser livres, sem filhos. Também com um filho se pode ser livre. Tudo depende... Livre para fazer o quê? Se tiveres uma criança não podes sair até altas horas... Se gostas de ser mãe isso já é sucesso, não precisas de qualquer outra liberdade. É uma confusão de valores.
Vairagya deve ser bem entendido. Uma criança não resolverá todos os problemas, isso é vairagya, mas resolverá alguns. Aquilo que uma pessoa não recebeu dos seus pais na infância pode dar aos seus próprios filhos e assim processar tudo isso. Esse inconsciente tem de ser liberto, é um kashaya, e para isso a maternidade e a paternidade são a melhor coisa. Se for possível a pessoa deve ter filhos.


Sobre anabhishvangah putra-dara-grhadishu - Ausência de obsessão em relação a filhos, mulher e lar.
O Swamiji costuma dizer "Somos todos apaixonados pelo Eu satisfeito". Como encontrar amor e liberdade nas relações?

A afeição é necessária, abhishvanga é afeição, e é necessária para os seres humanos, eles requerem afeição e esta fá-los sentir amados, o que parece ser uma grande necessidade. A criança não entende "eu sou amada". Nenhuma criança percebe isto. Se a mãe se afasta por alguma razão ela imediatamente pensa "eu não sou amada", esta é a forma de pensar de uma criança. Assim sendo, o que devemos fazer é tornar esse carinho e afeição objectivos. Cuidar é uma coisa maravilhosa. Tu dás e fá-los sentir acarinhados. Outra coisa é a obsessão, estar constantemente preocupado "o que vai acontecer, o que vai acontecer, o que vai acontecer" isso é obsessão. "Como vou sobreviver sem esta pessoa", tudo isso é obsessão. Tenho de entender que tudo é oferecido por Ishvara e que tenho o meu círculo, o meu pequeno círculo de relações dentro do grande círculo, logo é dele que eu tomo conta. Tenho de fazê-lo e gosto de fazê-lo pelo que se torna seva, torna-se a tua contribuição. Uma criança é-me dada, sob o meu cuidado, sob o meu amor a criança vai crescer, então asseguro-me que ela cresça bem, no seu espaço, sem tentar controlar, amor não é controlo. Fazemos frequentemente esta confusão entre amor e controlo " eu amo-te por isso senta-te!", isso é um problema. Assim, dá espaço à pessoa para que ela possa ser livre, para que ela possa expressar o seu amor. Não é fácil, porque onde há amor a obsessão espreita, o controlo, o ciúme, o medo espreitam, pelo que devemos estar devidamente conscientes de que fomos criados por uma lei, cada um crescendo no seu tempo (tradução da palavra pace, Swamiji inicia aqui um trocadilho com as palavras pace e space). Tempo e espaço são coisas diferentes, então devemos entender que cada pessoa cresce no seu tempo e espaço. Isto significa que não podes esperar o crescimento imediato da criança, ela tem de crescer no seu próprio tempo, como o botão de uma flor desponta no seu devido tempo, não podemos apressá-lo, isso é amor - permitir que a pessoa cresça no seu tempo e espaço, isso é anabhishvangah putra-dara-grhadishu. Se estamos a falar de um objecto (uma casa, um carro,...) é a mesma coisa. Cuidamos das nossas coisas, mantendo o carro limpo, oleado... O carro não deve ser uma extensão de mim mesmo, noto que algumas pessoas lhe dão uma ênfase
excessiva, chama-se a isto valor exagerado, a pessoa projecta-se noutra coisa qualquer. Isto é um problema de auto-imagem, um bom estudo de Vedanta levará tudo ao sítio. Um correcto estudo de Vedanta resolverá este problema de auto-imagem. Se eu sou o Todo onde está o problema de auto-imagem? Então, isso vai-se quando correctamente entendido, por isso temos de ensinar.


[1] Might Is Right ou The Survival of the Fittest, é um livro do autor com o pseudónimo Ragnar Redbeard. Considera-se que advoga o Darwinismo social e que tenha sido publicado em 1890. Nesta obra o autor rejeita as ideias convencionais dos direitos naturais e humanos e argumenta que apenas o poder físico e da força podem estabelecer a ordem moral.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

SUA PRÁTICA DE HATHA YOGA, SÁDHANA É ACERTAR O ALVO

Sadhana


SUA PRÁTICA DE HATHA YOGA

Por Pedro Kupfer






Este texto versa sobre a importância da prática pessoal para a consecução do objetivo do Yoga. Esse objetivo é moka, a iluminação. Este artigo tem duas partes, das quais a presente é a primeira e está centrada na construção da prática pessoal. A segunda, cujo tema central é o alvo dessa mesma prática, está publicada neste website sob o nome "Sádhana é acertar o alvo". 
O amigo leitor poderá considerar isto uma espécie de “fórmula” com algumas sugestões para elaborar sua prática pessoal, em harmonia com a maneira em que, tradicionalmente, estas práticas têm sido feitas. A sequência e maneira em que estas técnicas aparecem aqui listadas respeita rigorosamente a estrutura que aparece em algumas escrituras do Yoga, que citaremos logo a seguir.
A organização das diferentes práticas do Yoga em etapas ou membros é comum a quase todos os sistemas técnicos e continua sendo usada até hoje, para sistematizar a miríade de técnicas que o Yoga desenvolveu desde sua origem.
Em todas elas, há algo em comum: as técnicas são colocadas sequencialmente, sempre a partir da mais densa e em direção à mais sutil. Partindo das experiências do corpo físico e das questões relativas à vida cotidiana, essas práticas assumem uma progressiva sutileza, cuja culminação é o estado de liberdade e plenitude, chamado moka.
O modelo de sugestão de prática aqui apresentado está inspirado no saptasādhana, a prática em sete etapas ensinada num antigo texto de Haṭha Yoga chamado Gheraṇḍa Sahitā, do século XV. Certamente, o esquema de prática da Gheraṇḍa Sahitā está baseado no Aṣṭaṅga Yoga compilado pelo sábio Patañjali, do século IV ou III a.C., que já é certamente bem familiar para o leitor, e cujas partes são as seguintes:
1. Yama: prescrições de conduta,
2. Niyama: proscrições de conduta,
3. Āsana: posturas físicas,
4. Prāāyāma: respiratórios,
5. Pratyāhāra: abstração sensorial,
6. Dhāraā: concentração,
7. Dhyāna: meditação e
8. Samādhi: iluminação.
Esse sistema óctuplo recolhido por Patañjali, por sua vez, foi claramente inspirado no aāga, uma prática em seis etapas que aparece na Maitrī Upaniad, um texto de 3500 anos de idade. Acreditamos que esta prática, aāga, só não é mais conhecida simplesmente por que não menciona nem lista posturas físicas de nenhum tipo. Isso não significa, necessariamente, que a postura não fosse importante, mas que talvez, por ser óbvia, não precisaria ser mencionada. O mesmo vale, tanto neste caso como no do sapta sādhana citado mais abaixo, para a ausência de uma prática separada de yama e niyama. Os seis membros do aāga da Maitrī Upaniad são os seguintes:
1. Prāāyāma: expansão da vitalidade,
2. Pratyāhāra: abstração sensorial,
3. Dhyāna: meditação,
4. Dhāraā: concentração,
5. Tarkā: questionamento, e
6. Samādhi: iluminação.
Estes dois modelos, por sua vez, deram lugar a vários outros, dos quais escolhemos aqui propositalmente o da Gheraa Sahitā, por ser o mais familiar para o praticante de Yoga contemporâneo, uma vez que a maior parte das técnicas que aparecem listadas nessa obra são bem conhecidas. As demais obras medievais de Haṭha Yoga, como a Haha Yoga Pradīpikā, o Dattatreya Yogaśāstra, o Yoga Yājñavālkya e outras, seguem igualmente esse mesmo modelo, com algumas pequenas diferenças nas listas, no número ou nos nomes das técnicas. Assim, as sete fases do saptasādhana são estas:
1. akarma: ações purificatórias,
2. Āsana: posturas psicofísicas,
3. Mudrā: selos para estabilizar a força vital,
4. Pratyāhāra: abstração sensorial,
5. Prāāyāma: exercícios respiratórios,
6. Dhyāna: concentração para a compreensão, e
7. Samādhi: iluminação advinda do autoconhecimento.
Iremos analisar, primeiramente, a maneira de integrar as diferentes técnicas com as atitudes e cuidados que precisamos ter para que a prática seja uma fonte constante de alegrias e descobertas nesse fascinante caminho que é o autoconhecimento. Conjuntamente, iremos elaborar sobre o propósito e lugar que cada uma dessas técnicas ocupa no panorama do Haṭha Yoga.
Para concluir, daremos algumas dicas para facilitar a prática. Cabe lembrar que estas dicas apenas complementam e não substituem, de maneira alguma, a instrução que devemos ter em sala de aula, em presença de um professor competente.

Uma prática em nove passos

1) Śānti paha.
Toda prática, assim como toda aula de estudo, tradicionalmente, começa e termina com uma invocação. Portanto, tanto a primeira como a última etapa deste modelo de prática é esse mantra propiciatório. Śānti paha significa “invocação da paz”. Tem alguns mantras muito simples, mas não menos eficientes para criar um ambiente adequado à prática.
Recomendamos os mantras de invocação da paz como, por exemplo, certos trechos do svāsti paha como este: loka samasta sukhino bhavantu (que significa “que todos os seres no mundo sejam felizes)”, precedido por algumas repetições do O, o som sagrado que aponta para o Ser.
Alguns praticantes preferem fazer apenas as repetições do O. Este mantra irá levar, no máximo, dois minutos e tem o intuito de trazer a atenção da pessoa para o presente, deixando de lado todas as possíveis fontes de distração. Fazer um mantra destes pode nos levar três a cinco minutos.

2) Nididhyāsanam.
É recomendável ter, em cada prática, uma reflexão ou tema, que possa pautar as escolhas e atitudes como, por exemplo, os valores essenciais do código de conduta: não-violência (ahimsā), veracidade (satya), simplicidade (hri), retidão (arjavam), capacidade de adaptação (kśānti), firmeza de propósito (sthairyam), ausência de egoísmo (anahakāra) ou outros.
Neste momento, que é, tecnicamente falando, o silêncio que precede ao mantra invocatório, é aconselhável igualmente parar por um instante para verificar o nosso nível de energia, bem como para determinar o tipo de esforço que idealmente, devemos aplicar na prática. Esta parte da prática, assim como o mantra inicial, é de uns três ou cinco minutos, podendo, se for o caso, estender-se um pouco mais.

3) akarma.
Como é sabido, o Hatha Yoga dá muita importância às ações de purificação. Neste ponto, escolha então uma das purificações, como a auto-massagem abdominal, os exercícios para os olhos, a limpeza nasal, etc. Esta parte da prática pode ser feita em pouco menos de cinco minutos. As seis ações purificatórias tradicionais são as seguintes:
1) Dhauti: a purificação do trato digestivo e outros processos, como a limpeza dos dentes, as gengivas e a garganta;
2) Vasti: a lavagem intestinal, usando água morna e salgada;
3) Neti: a limpeza nasal, feita com um pano ou com água salgada;
4) Nauli: a auto-massagem e tonificação abdominal;
5) Trātaka: a purificação do olhar através de exercícios que são verdadeiros āsanas para os olhos; e
6) Kapālabhāti: a limpeza das vias respiratórias.

4) Āsana.
Esta seção da prática pode levar até 40 minutos. A grande dúvida que pode surgir neste ponto é como montar uma série equilibrada de posturas. Na hora de escolhê-las, leve em consideração que uma prática corretamente balanceada segue uma combinação equilibrada destes três critérios seletivos: a correta escolha dentro de cada grupo postural, as cinco ações da coluna e as posturas do corpo em relação à força de gravidade. Lembre igualmente da permanência em cada āsana: posturas com maior estabilidade, como as sentadas ou deitadas, permitem uma permanência maior; posturas de equilíbrio num pé só, ou sobre as mãos e outras de estabilização ou força, geralmente mais exigentes, pedem uma permanência mais breve. Idealmente, uma prática balanceada inclui várias de cada uma dessas categorias.
I) Grupos posturais
a) equilíbrio,
b) estabilização articular,
c) flexibilidade articular,
d) fortalecimento muscular,
e) alongamento muscular, e
f) repouso.
Percebemos que alguns praticantes confundem a prática de āsana com uma espécie de alongamento passivo. Alguns professores, na mesma linda, dão excessiva importância ao aumento da flexibilidade e do alongamento. Porém, para que a prática seja equilibrada, é necessário que ela inclua, além de posturas de alongamento passivo, outras de estabilização, fortalecimento e repouso. Uma prática excessivamente centrada apenas na flexibilidade e no alongamento pode vir a produzir um corpo hipermóvel, mas não trabalha força nem resistência. Um corpo hipermóvel, sem estabilidade articular nem resistência, está sujeito a lesões.
II) Ações da coluna vertebral
a) extensão axial (tração),
b) lateralidade,
c) torção,
d) flexão, e
e) hiperextensão.
Estas são as cinco ações que uma coluna vertebral sadia é capaz de executar. Elas devem ser alternadas, mas não precisam ser feitas exatamente na ordem desta lista. Há, ainda, diferentes combinações dessas ações. Idealmente, antes de cada flexão, extensão ou torção, é necessário aplicar a tração, para ganhar espaço. Ao passar para a execução dessas ações, é preciso, na medida do possível, manter ainda esse espaço. A prática conjunta das posturas com os bandhas, as contrações de músculos e plexos como o mūla bandha (elevação do assoalho pélvico) e o uḍḍīyana bandha (recolhimento do baixo ventre), ajuda bastante a manter esse espaço.
III) Posturas possíveis do corpo.
a) posturas em pé,
b) posturas sentadas,
c) posturas deitadas, e
d) posturas de inversão.
Este último critério leva em consideração a influência da força de gravidade sobre o sistema circulatório. Por via de regra, começamos a prática em pé e a concluímos na postura de inversão, seguindo a ordem acima sugerida. Entre o início e o final, há dois grupos posturais: as posições sentadas e as deitadas. Cada grupo se faz seqüencialmente, de maneira e não precisemos, por exemplo, passar da postura e pé para a deitada, e logo sentar para ficar novamente em pé. Este modelo de prática balanceada de āsanas foi ensinado desta forma por Swāmi Śivānanda, de Rishikesh, em seu livro Haha Yoga, editado na década de 1940. Muitos professores hoje em dia seguem essa recomendação, por ser ela segura e lógica ao mesmo tempo.

5) Mudrā.
Talvez as mudrās sejam as práticas menos conhecidas do Haṭha. Sobre elas, a Gheraa Sahitā, que descreve 25 diferentes, afirma que “devem ser cuidadosamente guardadas em secreto”. Estas mudrās fazem parte daqueles procedimentos que certamente não são conhecidos nem praticados na maioria das versões de Hatha Yoga que vemos na atualidade. Ou, se fizerem parte, aparecem nas suas formas mais simplificadas. Talvez o caso mais conhecido dessa extrema simplificação (para não dizer empobrecimento da prática original) seja a viparītakaraī mudrā. Este é um nome usado apenas para descrever uma versão simplificada da inversão sobre os ombros, deixando de lado as visualizações da energia vital e o sutil trabalho realizado com ela. Outros exemplos são a yogamudrā e a mahamudrā.

6) Prāāyāma.
Prāāyāma é um termo que, literalmente, significa “expansão da vitalidade”. Claramente, os textos do Haṭha declaram que o objeto do prāāyāma não é o controle da respiração, como habitualmente ouvimos dizer, senão o comando da mente. A conexão entre a forma de respirar e a paisagem mental é bem conhecida: trabalhando sobre uma, indicimos na outra. Idealmente, o prāāyāma se faz logo após as posturas físicas e as mudrās. Um bom prāāyāma, para iniciantes, não leva mais do que 10 minutos. Neste modelo, colocamos o prāāyāma antes do relaxamento, mas ele poderia igualmente ser feito depois, junto com a meditação. A vantagem de colocar o yoganidrā entre essas técnicas é que evitamos uma permanência extensa demais na posição sentada. Se formos juntar os respiratórios com a meditação, a permanência na postura sentada será superior a meia hora. Isso, para algumas pessoas, pode ser muito difícil.

7) Yoganidrā.
A técnica de relaxamento, consiste em descontrair conscientemente, fazendo um parikrāma, ou seja uma circunvolução da atenção pelas diferentes partes do corpo, aplicando uma respiração específica, na qual a expiração é mais curta do que a inspiração, como acontece naturalmente no estado de sono profundo. Ainda dentro desta parte da prática, cabe repetir o sakalpa, a resolução interior, que pode ser trabalhada de maneiras diferentes. Para relaxar não é preciso fazer nada além de deitar em silêncio: basta-nos lembrar da paz que essencialmente somos, deixar o corpo imóvel numa postura bem confortável, suavizar deliberadamente a respiração e permanecer atento na quietude. Uma prática de relaxamento vai levar pelo menos 10 minutos, se não tiver muito tempo disponível. Idealmente, dedique um pouco mais de tempo a relaxar, mas sem se deixar escorregar para o sono!

8) Dhyāna.
Dhyāna é a técnica de contemplação por excelência. Meditar é escolher um tema e realizar uma calma e conscienciosa reflexão nele. Isso não é, evidentemente, “deixar a mente em branco”, senão ocupar a mente com pensamentos harmoniosos (sáttvicos), não como um fim em si mesmo, senão como uma maneira de estabelecer-se na auto-identidade, compreendida, como simplicidade, tranquilidade e plenitude. Cabe lembrar que as técnicas de meditação são muito diversas e que, idealmente, devemos escolher livremente, alguma com a qual nos identifiquemos. Ou, como diz o sábio Patañjali no Yoga Sūtra (I:39), devemos “meditar sobre um objeto que seja agradável”. A escolha da técnica meditativa pode estar em função do tema de reflexão que aplicamos ao longo da prática. Escolha uma técnica, aquiete o corpo e a respiração, e persevere nela por 15 a 20 minutos.

9) Śānti paha.
Este mantra pode ser o mesmo do início, ou outro da sua escolha. A “moldura” final do sādhana é tão importante quanto a inicial, uma vez que o intuito de ambas é o mesmo: chamar a atenção do praticante para o momento presente. Se, no início, o mantra indica algo assim como “agora, vamos ficar atentos, pois a prática está começando”, da mesma maneira, ao fazermos este mantra final, ele deve servir para nos lembrar que “agora é preciso ficar atento, pois a prática conclui-se aqui, mas a atentividade permanece”. Ao fazer um mantra, lembre sempre de manter presente seu significado. O tempo desta parte da prática, novamente, será de alguns poucos minutos.

Sete dicas importantes.
·       É necessário verificar se, no momento em que iniciamos, precisamos dar uma atenção especial a alguma parte do nosso corpo, à respiração ou à disposição interior. O corpo, a emocionalidade e o nível de energia mudam constantemente, e o nosso bom-senso precisa ouvir, interpretar corretamente os sinais dele, e adaptar o que for preciso.
·       Tenha sempre um plano de prática, mesmo que você vá adaptá-lo no andamento da prática, ou que não ele não seja usado. Não improvise. Use o bom-senso.
·       A correta escolha das técnicas, se for preciso, com a ajuda de um professor, é essencial, uma vez que elas não podem ser aprendidas somente lendo um texto.
·       Sobre a duração da prática: o tempo total deste modelo de prática é de aproximadamente 90 minutos. Se você não tiver esse tempo disponível esse tempo, poderá reduzir proporcionalmente a duração de cada parte da prática. Lembre que não existe prática ruim: a única prática inútil de Yoga é aquela que você não fez.
·       Certifique-se de sentir-se e estar à vontade na sala. Crie um ambiente adequado para praticar, que seja silencioso, onde você não será interrompido. Desligue o celular!
·       Não se force: não tente fazer sozinho aquilo que você não sabe ou não domina. Seja sempre cuidadoso e atento. Seja paciente e cauteloso, para evitar técnicas com as quais você não tenha familiaridade e que seu corpo, aparelho respiratório ou mente não estejam preparados para executar.
·       É preciso cultivar as boas maneiras na meditação, mesmo quando praticando sozinhos. A regra de ouro é: não se mexa. Porém, se mexer-se for inevitável, pelo menos não faça ruído. Dentro do possível, na postura de meditação você fica imóvel. Dentro do bom-senso, você cultiva o livre arbítrio. Se houver algum movimento, que seja silencioso.
·       Cultive também o estudo, a leitura e a amplitude de visão em relação ao Yoga em particular e à vida em geral.

Conclusão.
A atitude é mais importante que a técnica. Sem uma atitude correta, não poderemos colher os melhores resultados da prática de Haṭha Yoga. Praticar sem manter o foco no objetivo é perder o tempo. Praticar sem “fecundar” a prática com a visão do autoconhecimento é outra maneira de perder o tempo. A prática não é magia, no sentido que, pelo simples fato de repetir posturas, respiratórios, mantras ou meditações, moka não irá simplesmente acontecer. Essa questão é o tema de outro texto, disponível para leitura neste mesmo website. Pode lê-lo já de seguida em baixo.
Boas práticas e namaste!

Este artigo foi originalmente publicado nos "Cadernos de Yoga" e também no site www.yoga.pro.br. Pedro é professor de Yoga e Vedanta, reside no Brasil.

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SÁDHANA É ACERTAR O ALVO

Por Pedro kupfer






Este texto é a continuação do nosso artigo publicado recentemente,"Sua prática de Hatha Yoga". O tema daquele texto foi a construção do sādhana pessoal. Dentro desse tema ainda, este texto versa sobre a importância de mantermos o foco no objetivo dessa prática individual e, ao mesmo tempo, aponta alguns caminhos para relacionar-se da melhor maneira com essas técnicas.

A palavra sādhana, que habitualmente traduzimos como prática pessoal, deriva da arte da guerra, dhanuśāstra, e quer dizer “ir direto ao alvo”. Em sua acepção original, obviamente, o termo se referia a uma flecha ou lança que acertasse seu objetivo. O uso da palavra se estendeu à espiritualidade: no Ṛg Veda, sādhana designa, da mesma forma, aquilo que nos guia para um objetivo ou, todavia, um ritual ou propiciação que atinge seu propósito.
Sādhana também significa fazer algo com perfeição e ainda, livrar-se de uma doença ou feitiço. Esse último sentido é especialmente importante para um praticante de Yoga, já a a prática pessoal deveria nos auxiliar no processo de nos livrar dos condicionamentos, que poderiam ser vistos, metaforicamente, como feitiços que ofuscam a compreensão e o bom-senso.
O termo sādhana, então, designa a prática pessoal. Em alguns contextos, esse termo se refere ao conjunto das práticas de Yoga, incluindo a implementação dos yamas e niyamas, as práticas de āsana, prāāyāma, mudrās e concentração, dentre outras. Noutros contextos, ela se refere apenas à meditação. Para o propósito deste texto, escolheremos a primeira acepção.
Todos já ouvimos falar da capital importância da prática pessoal no Yoga. Porém, acontece que, muitas vezes, praticamos conscienciosamente, mas sem ter muito claro o tal do alvo para o qual deveríamos apontar com essa prática.

Qual é meu alvo? Aonde devo mirar?
Havendo esclarecido a definição de sādhana, resta-nos definir o objetivo. O erro humano básico, inato e congênito, é que a pessoa é vista, através dos seus próprios olhos, como sendo incompleta ou deficiente. Isso é o que deve ser combatido: moka, então, é livrar-se desse erro. O curioso é que essa equivocação, que poderia ser definida como ignorância existencial, assume muitas formas diferentes, e isso nos confunde.
Acertar o alvo na prática, então, é escolher corretamente uma prática que de fato possa facilitar esse processo chamado moka. O paradoxo, que já colocamos mais de uma vez em textos anteriores nesta publicação, é que as ações, sejam de tipo que for, não podem nos proporcionar liberdade. Liberdade, neste contexto, não é o fruto de alguma ação, mas o fruto do autoconhecimento.
A ignorância é o alvo do yogi, já que ela é a causa do sofrimento. O sofrimento é o resultado do desejo de ser diferente do que se é que, por sua vez, é o resultado da ignorância existencial. O yogi deve aceitar o fato de que a ignorância precisa ser removida.
O Haṭha Yoga, a prática de āsanas, prāāyāma e meditação, ou o Karma Yoga, visto como agir desapegado e consciente, não removem a ignorância por si mesmos. Se não houver conhecimento envolvido nas ações, elas, sozinhas, não irão produzir liberdade. Então, para que a prática de Haṭha Yoga renda seus devidos frutos, ela precisa ser fecundada pelo autoconhecimento.
Noutras palavras, poderíamos definir a prática como um momento de reflexão no qual aplicamos os valores e o ensinamento sobre aquilo que somos. Uma prática sem a devida reflexão, certamente irá produzir efeitos psicofísicos positivos como a melhora na qualidade do sono, o aumento da capacidade respiratória, e o bem-estar geral. Mas esses são efeitos colaterais insignificantes, se comparados com o objeto que é moka.
Nas palavras de Swāmi Dayānanda: “Você não pode apagar um incêndio usando gasolina, só por que a gasolina é líquida como a água. Concluir que por ser um líquido, ela pode apagar o fogo, é equivocado. O fogo vai gostar desse alimento e o incêndio vai continuar, pior do que antes.
Não podemos nem devemos, então, realizar mais ações na esperança de que elas nos livrem da ignorância. Isso seria tão tolo como tentar apagar o incêndio jogando combustível nele. O único fator capaz de remover a ignorância, portanto, é o conhecimento.” Conclusão: meu alvo é me livrar da ignorância. É para isso que pratico.

Quem se liberta?
Esta pergunta deve ser igualmente respondida para esclarecer o propósito da prática pessoal. O Ser, sendo ilimitado, não precisa de liberdade: ele já é a liberdade da ilimitação. O Ser não precisa “alcançar” a plenitude: ele já é a plenitude. Então, não há moka para o Ser: ele já é moka.
O corpo físico, por sua vez, é um veículo. Independentemente de o usuário do corpo ter ou não ter moka, o corpo segue sua própria agenda e vence pontualmente no seu prazo de validade, apesar de que alguns praticantes têm a ilusão de que um corpo de yogi seja algo especial, diferente dos demais corpos humanos. Findo o prazo de validade, o corpo físico se desintegra. Isso significa que não há iluminação para o corpo material, independentemente do fato de que alguns poucos yogis conseguem uma longevidade superior ao século de vida, como foram os recentes casos dos mestres Kṛṣṇamacharya e Indra Devī.

“Meu mestre é jovem e bonito”.
Uma longa vida num corpo físico, por dilatada que seja, não pode ser confundida com eternidade. Se moka é livrar-se do senso de ser limitado, em moka nos conhecemos como o Ser, que é intrinsecamente livre das limitações espaço-temporais. Obviamente, não estamos falando de eternidade no sentido físico, já que o que é eterno ou ilimitado não está condicionado pelo tempo-espaço.
Assim como há gente que acredita no paraíso, também há praticantes que assumem como verdadeiro o mito de que alguns yogis teriam a capacidade de viver por milênios no mesmo corpo físico. Uma vez, ao comentar com alguém que meu mestre, Swāmi Dayānanda, aos seus 80 anos de idade é diabético, tem uma cardiopatia e não enxerga muito bem, a pessoa me respondeu: “ah, mas eu não queria um mestre que ficasse doente!”
Ou seja, esta pessoa desde aquela ilusão de que os iluminados não adoecem e ainda, tinha a crença de que saúde e realização pessoal devem andam necessariamente juntas. Assim, descartou aí mesmo a possibilidade de aprender com um ancião muito sábio (com uma rara lucidez, e que ainda faz ótimas piadas!), julgando a qualidade do professor pela saúde do seu corpo físico.
Concluir isto é como cair naquela velha armadilha da política brasileira sobre o candidato jovem e bonito. A pessoa que escolhe seu próprio mestre pela saúde ou aparência física corre o risco de ter confiscada sua “poupança espiritual”, com aconteceu com o dinheiro dos que votaram (e ainda, a poupança dos que não votamos!) naquele ex-caçador de marajás.
Então, por mais que usemos metaforicamente a expressão “iluminar o corpo”, a verdade é que não há iluminação para ele. Que mais nos resta, na lista dos candidatos a moka dentro do complexo corpomente, uma vez descartados o Ser e o corpo material? O que sobra são os corpos sutil e causal, sūkma e karaa śarīra. Para esses sim, há moka. Então, moka é a libertação desses dois corpos, o sutil e o causal.
O corpo sutil é aquela associação de inteligência, ego, mente, vitalidade e órgãos sensoriais e de ação, ānendriyas e karmendriyas. O corpo causal é aquele que determina os nascimentos e traz o registro dos prārabdha karmas, os karmas que devem ser trabalhados a cada encarnação. Liberdade é, neste contexto, eliminar o senso de limitação que mencionamos acima. Nada mais. É um processo gnosiológico, que não envolve nenhuma outra mudança física ou energética.

A prática é para os corpos sutil e causal.
Cada um de nós tem uma diferente combinação de karmas que vai determinar um tipo diferente de corpo e uma série de processos aos quais esse corpo estará sujeito. Cada nascimento, em cada lugar, determina a exposição a diferentes elementos: nascer ou (escolher) viver num lugar frio ou quente, seco ou úmido, determina o tipo de relação que iremos ter com a natureza. Cada situação pontual responde a um tipo específico de karma. Agora, você e eu nascemos nestes corpos que chamamos nossos.
Diz um Śāstra que, dentre os diversos nascimentos, o mais difícil de se obter é o humano, pois a conjunção das diferentes combinações que produzem este tipo de nascimento são raras e preciosas. Esse já seria um motivo para não desperdiçar o tempo que nos é dado nesta vida. Outro motivo é o bom-senso. A ideia de não desperdiçar a vida inclui, evidentemente, a correta escolha da nossa prática pessoal.
Definido então o propósito da prática, já temos em mãos elementos suficientes para perceber que uma prática que esteja centrada unicamente no corpo poderá, de fato, prolongar a nossa longevidade e nos dar mais saúde. Se assumirmos como correta a constatação de que não há libertação para corpo material, então, a prática deveria incluir bastante mais do que apenas posturas e relaxamento, já que um sādhana unilateral desse tipo nunca irá nos levar a moka.
Portanto, precisamos olhar para aquilo que chamamos de prática pessoal de Yoga desde uma perspectiva mais ampla, embora essa não seja a visão preponderante nos dias atuais, em que muita, mas muita gente, pensa que Yoga seja apenas a prática dos āsanas e, no máximo, o relaxamento.
Dentre a miríade de técnicas que compõem a aljava de recursos do Yoga, destacam-se, para o hahayogi, o āsana, o prāāyāma, as mudrās e as técnicas de concentração e meditação. Um lugar central, embora nem sempre evidente, é ocupado pelas atitudes, yamas e niyamas, que fazem parte do código de conduta dos yogis.
Técnicas auxiliares a elas são os mantras invocatórios, que servem como molduras inicial e final para a prática, os bandhas, dṣṭis e visualizações.
Outros recursos importantes, aplicados fora da sala de práticas, são a dieta vegetariana e um estilo de vida em que o princípio áureo da não-violência esteja sempre presente. Isso inclui atitudes como o consumo consciente, a dedicação de alguns momentos do dia a ações centradas no bem-estar coletivo e outras que fazem parte da cultura do Yoga.

Estratégia.
Uma vez estabelecido o propósito inicial e definido o objetivo final, falta-nos dizer ainda uma palavra sobre a forma de agir durante o sādhana. A forma de praticar, considerando que as ações sozinhas não produzem a liberdade que estou buscando, deve incluir uma atitude interior, bem como realizar um processo que consta de três fases, conforme ensinado na Bhadāraṇyaka Upaniad: śravaṇam, manaṇam e nididhyāsanam. Destas três, a primeira é aquela na qual nos expomos ao ensinamento das Upaniṣads que indicam que eu já sou a plenitude que estou buscando, conforme indica a grande sentença védica tat tvam’asi, “tu és Isso”.
Essas afirmações védicas que apontam para a natureza do Ser devem ser aprendidas de um professor. Quando nos expomos ao conhecimento, o professor torna-se um veículo para ele, já que o ensinamento é transmitido por ele. Por isso, ele não pode ser obtido apenas por livros. Śravanam, diferentemente de estudar por livros, em que há certas ações envolvidas, não envolve esforço da parte do estudante, assim como não há esforço, quando nossos olhos enxergam bem, em observar os objetos que nos rodeiam. Śravanam quer dizer literalmente “escutar [o ensinamento das Upaniṣads]”.
No entanto, se persistir alguma dúvida, eu não terei a visão de mim mesmo como alguém pleno, assim como, se houver alguma dúvida sobre se um cabo elétrico está ligado à rede, não o tocarei, pois não quero correr o risco de levar um choque. Manaṇam é, então, esse processo através qual elimino todas as dúvidas, pois não posso passar para a próxima etapa, a contemplação, nididhyāsana, se não souber sobre o quê meditar. Manaṇam pode ser traduzido como “questionamento [para esclarecer as dúvidas]”.
Por sua vez, esta terceira etapa que é a contemplação serve para sedimentar o conhecimento e a visão em mim. Dessa última fase, o primeiro passo é upāsana, a meditação sobre os valores, que me permite preparar o terreno, por assim dizer, para fazer posteriormente as contemplações yogikas propriamente ditas. Nididhyāsana quer dizer “reflexão [sobre que já se sabe de si mesmo]”.
A prática de Haṭha Yoga inteira entra neste último momento do processo, e é desde esta perspectiva que deve ser olhada. Noutras palavras, toda a qualquer prática de Haṭha Yoga, do āsana ao yoganidrā, do prāāyāma à mudrā, são, ou deveriam ser, formas de reflexão sobre aquilo que já se conhece sobre si mesmo, nididhyāsana. Isso significa, dentre outras coisas, que não é recomendável praticar sem estudar, assim como não é recomendável estudar sem praticar.
O Viṣṇu Purāṇa é um antigo texto que compara o estudo e a prática com os nossos dois olhos. Sem ambos os olhos abertos, não é possível se ter uma visão cabal da realidade, uma vez que se perde a profundidade: “Do estudo deve-se passar ao Yoga. Do Yoga deve-se passar ao estudo. Pela perfeição no estudo e no Yoga, a Consciência Suprema se manifesta. O estudo é um dos olhos com que se percebe o Ser. O Yoga é o outro.” VI:6.2.
Para aqueles que acham que o Vedānta é apenas uma “filosofia teórica” que sofreu uma espécie de casamento forçado com o Haṭha Yoga, cabe lembrar da importância dada por exemplo, no Dayānanda Ashram, de Rishikesh, uma das instituições mais tradicionais de ensino de Vedānta, às práticas de prāāyāma e meditação, conduzidas pelo próprio Swāmijī cedo pela manhã, bem como às práticas de āsana e relaxamento, ministradas diariamente por professores de Haṭha Yoga para ajudar no processo de compreensão do ensinamento, uma vez que elas possibilitam que o corpo permaneça sentado com conforto nas longas horas de estudo, além, é claro, de manter a pessoa focada, com mais saúde e melhor disposta para receber o ensinamento.
Se essas técnicas não fossem importantes, como afirmam alguns “yogis de sofá”, não estariam tão presentes no cotidiano desse mosteiro, que é um dos mais tradicionais para o ensino do Vedānta na Índia. Feitas estas precisões, passemos então aos aspectos práticos da construção do sādhana pessoal.

Reflexão na prática?
Que significa fazer nididhyāsana ao praticar? Seria por ventura “pensar na vida” enquanto se pratica? Significa deixar a mente vagar por assuntos “profundos” enquanto realizamos nossos respiratórios ou mantras? O yogi exerce o nididhyāsana na prática da mesma forma que qualquer ser humano naturalmente se extasia perante a natureza, a imensidão do firmamento, o nascimento de uma criança ou ao completar uma cura.
A Śvetaśvatara Upaniad começa colocando estas questões: “Qual é a nossa origem? De onde nascemos? Por que vivemos?” Essas perguntas estabelecem o início de toda jornada pelo autoconhecimento. A contemplação é um elemento fundamental da condição humana. Basicamente, refletimos porque somos humanos.
Percebemos o corpo desde dentro dele. No nididhyāsana, o corpo não é visto como um objeto qualquer, mas como o lugar no qual acontece a vida, uma expressão de Samaṣṭi, o Todo. Na visão não-dualista, o físico é a corporificarão do Ser, e não existe sem ele. O corpo humano não é uma máquina feita de matéria inconsciente animada pela mente, mas uma realidade vital animada pela presença do Ser que, aliás, está em todos os aspectos da criação.
Como Ser corporificado, esta estrutura física, viva e consciente, se vincula com o mundo. Tocar é ser tocado. Abraçar outra pessoa é ser abraçado por ela. O abraço não é o contato físico de dois corpos, mas o encontro de dois seres vivos. E, quando dois seres se encontram, não há duas dualidades corpo-mente tocando-se. Se você vive como Ser no corpo vivo, não há dualidade corpo-mente.
A separação surge quando olhamos para a vida desde a identificação com os desejos e aversões do ego. O Ser não é limitado por tempo ou espaço. O corpo, por seu lado, sim, tem evidentemente limitações. Essas limitações são dinâmicas e têm seu próprio ritmo, pautado pelos processos de crescimento, aprendizado, fortalecimento, maturidade, doença, envelhecimento e morte física.
As práticas do Yoga aprofundam a “relação” (se podemos falar numa), entre o Ser e o corpo, no sentido que, ao ampliar e enriquecer a mobilidade física e respiratória fica mais fácil compreender a si mesmo como alguém que não se restringe à experiência corpórea. Aumentar a mobilidade não é algo que apenas acontece no espaço físico ou vital; a expansão do corpo é o próprio espaço físico, crescendo.
Sabemos que as experiências, prazerosas ou não, ficam alojadas de forma dinâmica nos tecidos corporais e na mente subconsciente. O medo de repetir as experiências vinculadas com dor o sofrimento restringe os movimentos físicos, respiratórios e energéticos, criando padrões de tensão crônica.
A prática de āsana e prāāyāma, dentre outros benefícios, pode ajudar a dissolver essas couraças e apagar esses registros dos nossos ossos, músculos e nervos. Essa qualidade da prática cria uma nova visão, através da qual permanecemos em contato com essa pessoa simples e tranquila que somos.
Ao praticar, deixamos de lado todas as tarefas cotidianas. A prática acontece num espaço reduzido: basicamente, um pequeno tapete estendido no chão. Não há nenhum deslocamento físico para além desses limites. No entanto, dentro desse espaço, investigamos com o corpo todas as direções possíveis, observando conscientemente os padrões respiratórios e de mobilidade, e as eventuais dificuldades ou facilidades. Observando esses padrões, identificamos possíveis bloqueios ou cicatrizes e reconhecemos os sinais que as experiências passadas deixaram impressas no corpo.
Respiramos através do fácil e do difícil e reconstruímos a visão de nós mesmos como entidade vivente, plena e simples, nascida pela presença do Ser. Desta forma, investigando conscientemente movimento, permanência, respiração e auto-observação, eliminamos todos os obstáculos que os hábitos inconscientes e as experiências passadas impõem à nossa espacialidade e, conseqüentemente, à nossa mente. A prática, assim, cumpre seu propósito como um momento para a reflexão sobre aquilo que somos.
Boas práticas e namaste!

Este artigo foi originalmente publicado nos "Cadernos de Yoga" e também no site www.yoga.pro.br. Pedro é professor de Yoga e Vedanta, reside no Brasil.