Nádí shodhana pránáyáma, o pránáyáma nas escrituras clássicas do Hatha Yoga
Por Miguel Homem
Vimos dar início a um estudo comparativo de alguns pránáyámas nos textos clássicos do Hatha Yoga, o Hatha Yoga Pradipika, Gueranda Sámhita e Shiva Sámhita, com o que se pretende dar a conhecer parte daqueles textos bem como familiarizar o praticante com a linguagem dos shástras.O nádí shodhana pránáyáma é vulgarmente conhecido como a respiração alternada. A sequência base do pránáyáma é feita da seguinte forma:
a) Colocar as mãos em jñána mudrá, vishnu mudrá, nasagra mudrá ou outro;
b) obstruir a narina direita ou preferencialmente logo acima da narina bloqueando a passagem do ar;
c) inspirar (púraka) pela narina esquerda (respiração completa);
d) trocar a narina em actividade, obstruindo agora a narina esquerda;
f) expirar (rechaka) pela narina direita;
g) continuar o pránáyáma, inspirando pela narina direita e assim sucessivamente.
Este pránáyáma deve ser sempre agradável e nunca se deve perder o fôlego. Se isso acontecer deve diminuir-se a duração de cada fase da respiração. Note que a narina em actividade é alternada sempre que os pulmões estão cheios e nunca quando estão vazios. A inspiração é sempre feita pela mesma narina com que se expirou.
O nádí shodhana pránáyáma promove o bhúta shuddhi, nomeadamente a purificação do corpo subtil, ao nível das nádís, o que possibilita o despertar da kundaliní. Revigora o sistema nervoso e melhora o rendimento intelectual e desenvolve as faculdades mentais. Segundo Shivánanda este pránáyáma possibilita a levitação.
Ao nádí shodhana básico podem e devem ser acrescentados kúmbhaka (retenções), ritmo e bandhas. No entanto, o acréscimo deve ser feito sem pressa e no tempo individual de cada praticante.
O nádí shodhana pránáyáma é tradicionalmente considerado o pránáyáma mais importante. É o único citado na Shiva Samhitá. Deve ser praticado de forma diária e continua desde que se começa a fazer pánáyáma.
Nos textos de Hatha Yoga é comum a indicação de que os kriyás, entre os quais os shat karma, (dhauti, vasti, neti, trátaka, nauli e kapákabháti) devem ser praticados antes do prányáma por forma a permitir a limpeza e purificação do corpo denso e subtil (sthúla sharíra e súkshma sharíra). A Hatha Yoga Pradípiká precede mesmo a indicação sobre os shat karma com a indicação sobre o nádí shodhana prányáma tal a importância que lhe concede. Vejamos:
“Enquanto permanecerem impurezas nas nádís, o prána não poderá entrar no canal central, sushumná. Desta forma, o yogi não conseguirá o estado de umnaní avásthá[1] nem terá sucesso nas práticas. Somente quando todas as nádís que ainda estiverem impuras forem purificadas, é que o yogi poderá praticar pránáyáma com sucesso. Portanto, o pránáyáma deverá ser praticado diariamente, com um estado mental em que predomine sattva[2], até que sushumná fique livre de impurezas.” (II, 4-6).
Em seguida dá-se a descrição do nádí shodhana pránáyáma:
“Em padmásana, o yogi deve inalar pela narina esquerda e, após reter a respiração tanto quanto lhe seja possível, deve expirar pela narina direita. Na continuação, deve-se inalar pela narina direita, praticar kúmbhaka como antes e expirar pela esquerda. Depois do rechaka, deve-se fazer púraka pela mesma narina. O kúmbhaka deve ser mantido o máximo possível e depois expirar-se lentamente. Ao inspirar prána através de ídá, deve-se exalar através de pingalá, inspira-se de novo por pingalá e exala-se por ídá, depois de ter retido a respiração o máximo de tempo. O yogi que se aperfeiçoar na prática da ética e que praticar esta respiração alternada, purificará as suas nádís em três meses.” (II, 7-10).
Confrontemos com o que nos diz a Gheranda Samhitá:
“Sentado em padmásana, depois da adoração do Guru como ensinado pelo Professor, deve ele levar a cabo a purificação das nádís para obter sucesso no pránáyáma. Concentrado no váyu bija (Yam), repleto de energia e de cor esfumada, deve inspirar pela narina esquerda, repetindo o bija dezasseis vezes. Isto é o púraka. Deve reter a respiração por um período de sessenta e quatro repetições do mantra. Isto é o kúmbhaka. Depois deve expulsar o ar lentamente pela narina direita durante um período correspondente a trinta e duas repetições do mantra.
O centro do abdómen é o assento do agnitattva. Eleve-se agni desse local, junte-se com o prithivi tattva e contemple essa fusão de luz. Depois, repetindo dezasseis vezes o agni bija (Ram), deve inspirar pela narina direita, reter durante sessenta e quatro repetições do mantra e expulsar o ar pela narina esquerda pelo período correspondente a trinta e duas repetições do mantra.
Então fixe o olhar na ponta do nariz e contemplando, ali, o reflexo luminoso da lua, deve inspirar pela narina esquerda repetindo o bija Tham dezasseis vezes; depois reter o ar pela repetição do mantra Vam sessenta e quatro vezes. Entretanto visualize que o néctar flúi da lua na ponta do nariz e que corre pelos canais do corpo e os purifica. Mantendo a visualização, expirar repetindo trinta e duas vezes o prithivi bija lam.
Através destes três pránáyámas as nádís são purificadas. Então firmemente sentado em ásana pode começar a prática regular do pránáyáma.” (V, 38-45).
Na indicação da Hatha Yoga Pradipika o texto limitava-se a acrescentar o antar kúmbhaka, a retenção com ar, e a dar uma indicação sobre o período mínimo de prática. Aliás, a indicação dos três meses de prática continua para realização do nádíshuddhi é corrente, frequente e quase unânime na literatura.
Já a Gheranda Samhita, tráz-nos algumas “novidades”.
Nos textos tantricos e de Yoga de influência notoriamente tantrica como o Hatha Yoga e o Laya Yoga, aquela descrição do nádí shodhana pránáyáma é também utilizada como suporte para o nádi shuddhi ou bhúta shuddhi pránáyáma. Nádí shuddhi traduz-se por purificação das nádis, enquanto bhúta shuddhi indo mais de encontro ao cerne da descrição traduz-se como a purificação dos elementos (bhúta).
Ora cada um destes tattvas tem correspondência com os cinco primeiros chakras. Assim, o prithivi tattva tem o seu assento no múládhára chakra, o apas tattva no swádhisthána chakra, o tejas tattva (também chamado de agni tattva) no manipura chakra, o váyu tattva no anaháta chakra, e o akasha tattva no visuddha chakra. Cada um destes tattvas são representados simbolicamente nas imagens que se desenharam dos chakras. Assim, como descreve o Sat Chakra Nirupana, o elemento terra (prithivi) representa-se por um quadrado cor de açafrão, o elemento água (apas) por uma meia lua crescente de cor branca, o elemento fogo (tejas) por um triângulo invertido vermelho flamejante, o elemento ar (váyu) por uma hexagono de cor enegrecida (cinza), e o elemento eter (akasha) por um circulo de cor branca.
Quando o texto se refere ao váyu bija sabemos que se refere ao bija-mantra do chakra com o qual aquele tattva (o elemento váyu) tem relação, no caso o anaháta chakra. Através daquele bija pode querer-se potenciar o bhúta tattva (o elemento) ou o próprio chakra conforme a mentalização. O mesmo raciocínio vale para os restantes bijas citados no texto.
Vejamos agora o bija Tham:
O bija tham é um dos sub-bijas do manipura chakra. Ou seja, é o som produzido pelo prána a circular numa das dez nádís principais que afluem ao chakra, cada uma das quais representada por uma pétala da flor de lótus com o seu bija correspondente grafado. Começando a contar da esquerda para a direita partindo eixo é a quinta pétala. A título de exemplo veja-se o símbolo do tejas, o triângulo vermelho, e nele inscrito o bija mantra do chakra – Ram.
No entanto, não parece ser a esse bija que o texto se refere. Já na parte final da descrição faz-se referência à lua. Esta referência não deve ser entendida no sentido literal mas sim como uma metáfora ao soma ou indu (que significa lua) chakra que se diz libertar o nectar da imortalidade, o amrita. O bija Tham é o bija deste chakra que se situa ligeiramente acima do ájñá chakra dentro da chitriní nádí[3] e que o Kankálamáliní Tantra situa no pericarpo do sahásrara chakra.
O ritmo do prányáma é 1-4-2-0, contando 16 tempos para inspirar, 64 para reter e 32 para expirar. Neste padrão existem vários outros exemplos citados na literatura clássica. Em todos eles o aspecto purificatório do bhúta shuddhi é potencializado pelo uso do mantra e das técnicas de concentração e visualização. Em alguns dos exemplos os bijas usados variam ligeiramente, mas em todos eles se faz uso dos bijas para estimular o tattva correspondente e através dele, ou melhor, através da visualização a ele associada, produzir o bhúta e nádí shúddhi.
No exemplo dado, o processo purificatório consiste numa prática interna subtil de secar e queimar. O secar é levado a cabo através do bija (Yam) do elemento ar (váyu) associado à respiração e à mentalização. O queimar é levado a cabo a através do bija (Ram) do elemento fogo (tejas) associado à respiração e à mentalização. O processo purificatório é seguido por um novo processo de reenergização que consiste em refazer e tornar sólido e estável o corpo subtil. O novo corpo é feito com o mantra Tham associado à respiração e à mentalização, e a estabilidade e solidez são dadas ao corpo através do bija (Lam) do elemento terra (prithivi) associado à respiração e à mentalização.
Este processo refere-se não ao corpo denso mas ao corpo subtil e nele a mentalização tem um papel essencial. Os bija mantras actuam através do prána[4] que põem em movimento.
Como se disse, outros mantras são também utilizados noutras descrições. Shyam Sundar Goswami fez um estudo comparativo das indicações dadas nos shástras e encontrou a base mais comum deste bhúttashuddhi pránáyáma[5], com o ritmo 1-4-2-0 no tempo 16-64-32:
1 - inspirar pela narina esquerda, reter com ar, trocar a narina em actividade, obstruindo agora a narina esquerda, expirar pela narina direita, sempre com manásika japa Yam e a visualização;
2 - inspirar pela narina direita, reter com ar, trocar a narina em actividade, obstruindo agora a narina direita, expirar pela narina esquerda, sempre com manásika japa Ram e a visualização;
3 - inspirar pela narina esquerda com a repetição mental do mantra Tham e visualização; reter com ar com o japa Vam, expirar pela narina direita com o japa mental do mantra Lam e a visualização.
O processo purificatório dos bijas consiste então em cinco estapas:
1. Secar com o mantra Yam,
2. Queimar e remover com o mantra Ram,
3. Fluxo de amrita com o mantra Tham,
4. Irradiação a partir do indu chakra com o mantra Vam,
5. Estabilidade com o mantra Lam.
A estas visualizações podem ainda ser associadas as formas e cores, atrás enunciadas, correspondentes a cada um dos mahábhútas. O poder dos bijas mantras é estimulado pelo japa (a repetição), pela respiração e pela concentração e visualização intensas.
Cabe ainda dizer que não será por acaso que ao bija Yam corresponde a inspiração pela esquerda, retenção e expiração pela direita, enquanto ao bija Ram corresponde a inspiração pela direita, retenção e expiração pela esquerda. De facto, não é indiferente que a inspiração seja feita pela narina correspondente à nádí positiva – pingalá – ou pela narina correspondente à nádí negativa – idá. Segundo a teoria tradicional do Yoga, a narina de polaridade positiva ou solar corresponde à na narina direita, enquanto que a narina de polaridade negativa ou lunar corresponde à a narina esquerda. A respiração pela nádí solar ou positiva produz calor, actividade, acção, energia, é aferente. Já a respiração pela nádí negativa ou lunar, é refrescante, eferente, inibitória para os órgãos, produz passividade, introversão. Visto isto, fácil é perceber que cada bija mantra está associado à respiração pela nádí que melhor cumpre o fim do bhútashuddhi.
Por fim, vejamos o que nos diz a Shiva Samhitá:
“Então, deixem o patricante experiente fechar com o polegar direito a pingalá, inspirar por idá, e manter o ar confinado, suspendendo a respiração, pelo tempo que conseguir e depois expirar lentamente, e não com força, pela narina direita. De novo, inspirar pela narina direita, e parar de respirar enquanto a força permitir. Então, expirar pela narina esquerda, não violentamente, mas lenta e gentilmente. De acordo com este Yoga, pratique vinte kúmbhakas. Deve-se praticar diariamente, sem negligência ou preguiça, e livre das dualidades.” (III, 22-24).
“A força vital (prána) é, na verdade, a melhor amiga; a força vital é, na verdade, a melhor companheira. Ó magnífico! com toda a certeza não existe parente comparável à força vital” Shiva Svarodaya.
[1] Como ensina o Prof. Pedro Kupfer, é o mesmo estado que Patañjali chama de Nirvikalpa Samádhi.
[2] Satva é um dos gunas (guna significa qualidade, propriedade ou atributo) da Prakriti (mundo manifestado, matéria, natureza, substância cósmica). Os outros dois são tamas e rajas. A diversidade e a complexidade da natureza devem-se à interação, alteração e às variações desses três elementos. Assim, tamas significa inércia; rajas, movimento e sattva estabilidade. Suas funções são, respectivamente, a de limitar, a de ativar e a de manifestar a consciência através dos seus mais variados veículos. O guna sattva actua no homem como um estado de compreensão, satisfação, tranquilidade, reflexão, alegria e felicidade. Além de outras funções, facilita a percepção de estados mais subtis da Natureza.
[3] Chitriní nádí é uma das nádís que existem dentro da sushumná nádí. A outra é a vajriní nádí que envolve a chitriní.
[4] Aqui utiliza-se o termo prána no seu conceito genérico de váyu. O prána genérico (ou váyu) divide-se em cinco pránas ou váyus principais, que são: prána, apána, udána, samána e vyána.
[5] Swami Shivananda também cita este pránáyáma em The Science of Pranayama. Livro que se encontra disponível online no site www.yoga.pro.br.
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