terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Súryabhedana pránáyáma


Súryabhedana pránáyáma
por Miguel Homem





O súryabheda kúmbhaka pránáyáma significa literalmente o pránáyáma de retenção que perfura o sol ou, mais explicitamente, que perfura ou purifica a nádí solar, pingalá.
Descrevo a seguir uma forma simples da técnica:
a) Colocar as mãos em jñána mudrá;
b) obstruir a narina esquerda (lunar) utilizando o dedo médio da mão direita, preferencialmente logo acima da narina, bloqueando a passagem do ar;
c) inspirar (púraka) pela narina direita (solar);
d) reter o alento, executar jalándhara bandha e deglutir a saliva;
f) desfazer o jalándhara bandha e expirar (rechaka) pela narina esquerda;
g) repetir a sequência, inspirando sempre pela narina solar e expirando sempre pela narina lunar.
Depois de dominar bem esta sequência, pode-se, no fim ou durante todo o kúmbhaka (retenção com ar), executar uddiyana bandha e múla bandha e depois expirar. Ou seja, executar o bandhatraya (jalándhara, uddiyana bandha e múla bandha) no final da retenção e durante a expiração. Como em outros pránáyámas pode ser acrescentado ritmo e uma combinação diferente dos bandhas.
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Vejamos, agora, a descrição da Hatha Yoga Pradípiká:
“Para fazer este kúmbhaka, o yogi deve sentar-se em um ásana adequado, em um assento confortável, e inalar lentamente pela fossa nasal direita (pingalá). Na sequência, deve praticar kúmbhaka até sentir o prána penetrar em todo o seu corpo, desde a ponta dos cabelos até às unhas dos pés; então deve exalar lentamente através da fossa nasal esquerda (ídá).”[1] (II, 48-49).

Os ásanas para a prática de pránáyáma são de pouca ou nenhuma solicitação muscular, mas implicam alguma flexibilidade muscular e articular. São ásanas sentados com as costas naturalmente erectas, da categoria denominada dhyánásanas, justamente por serem também os melhores para dhyána (meditação). Os quatro clássicos são: samánásana, siddhásana, padmásana, svastikásana, e como alternativas vajrásana, virásana, bhadrásana.
Há que ter sobretudo em atenção que as costas devem estar sempre erectas, com a cabeça e o pescoço no alinhamento da coluna.

A inspiração é feita pela narina direita correspondente à nádí positiva – pingalá – que produz calor corporal e gera energia.
A referência à duração da retenção com ar (kúmbhaka) deve ser entendida habilmente. Por isso, num trecho anterior, a Hatha Yoga Pradípiká avisa “deve-se controlar o prána gradualmente, do mesmo modo como se domam os leões, os elefantes e os tigres (pouco a pouco, com paciência e energia), pois se assim não fosse o praticante poderia morrer).” (II, 15). Quer isto dizer que não se pode esperar dominar o pránáyáma de um dia para o outro, mas uma vez consciente disso o praticante deve esforçar-se com energia e afinco na prática e não fazê-la de forma “tamásica”. Com estas considerações, a indicação é a de que se deve explorar a duração do kúmbhaka (retenção com ar) até ao limite do controle individual de cada um. Claro está que aqueles que sofrem de tensão alta se devem abster destas retenções.
A Hatha Yoga Pradípiká volta a dar a indicação para que se expire lentamente. Assim, se no fim da retenção sentir necessidade de expirar rapidamente para fazer nova inspiração, é sinal que a retenção foi demasiado prolongada e deve ser reduzida de modo a trazer equilíbrio a todas as fases da respiração. A expiração lenta impede a dissipação do prána acumulado.

“Este excelente súryabhedana deve ser praticado sucessivas vezes, pois esvazia o cérebro (lóbulos frontais e seios nasais), combate os parasitas intestinais e cura os males causados pelo excesso de váta.” (II, 50).

Esta referência ao dosha váta demonstra a conhecida relação entre o Yoga e o Ayurveda desde tempos antigos. Os textos do Hatha Yoga, nomeadamente, fazem referências frequentes aos efeitos das diferentes técnicas sobre os doshas, como neste caso. Assim, o pránáyáma influencia de forma diferente os praticantes consoante o seu dosha. Dosha, que significa literalmente “falha”, indica os factores que dão origem à doença ou à decadência da saúde. De acordo com o Ayurveda, existem três doshas que correspondem ao bio-tipo de cada ser-humano conforme a interacção dos cinco elementos (bhútas) e que são váta associado ao elemento ar (vayu) e espaço (ákásha), Pitta, associado ao elemento fogo (tejas), e kapha associado aos elementos prithiví (terra) e apas (água).
O texto diz-nos que o pránáyáma corrige os desequilíbrios do dosha váta, o que se compreende porque a respiração pela nádí solar (direita) seguida da retenção prolongada estimula o elemento agni, fogo, o que ajuda a equilibrar os elementos elemento ar, vayu e espaço, ákásha (associados ao dosha váta). A referência em muitos textos apenas ao dosha váta é normal uma vez que este é o dosha principal[2].

Confrontemos com o que nos diz a Gheranda Samhitá:
“Gheranda disse:
Eu expliquei o sahita kúmbhaka; agora ouve o súryabheda. Inspira com toda a tua força o ar externo pelo tubo solar (narina direita). Retém este ar com grande cuidado enquanto executas jalándhara mudrá. Mantém a retenção enquanto a transpiração não sair pelas pontas das unhas e pela raiz do cabelo.” (V,58-59).[3]

O jalándhara bandha ou mudrá como é aqui chamado[4], auxilia a execução do kúmbhaka. Como sempre as costas devem ser mantidas erectas e é de evitar o curvar da coluna na execução do bandha. Mesmo que não seja possível a pressão do queixo no peito o importante é criar uma pressão na depressão jugular. Este bandha pressiona o prána para baixo em direcção à entrada de sushumná nádí, e ainda corta a passagem do fluxo de prána entre o plexo solar, no abdómen, e o plexo lunar, no alto da cabeça, evitando o arrefecimento do primeiro, bem como o aquecimento do segundo plexo. Diz-nos o Yoga Chudamani Upanishad “Graças ao jalándhara bandha, que contrai a cavidade da garganta, o néctar que desce do lótus de mil pétalas, não se queima no fogo digestivo e controlando as forças vitais, desperta a kundaliní.”

A seguir a esta citação do pránáyáma, a Gheranda Samhitá enuncia os principais váyus e suas funções. O prána genérico (ou váyu) divide-se em cinco práŠas ou váyus principais, que são: prána, apána, udána, samána e vyána. O prána está situado no alto do tórax, na região do coração, e o seu percurso começa no umbigo e vai até à garganta. Este váyu associado à respiração é activado pela inspiração e é responsável pela captação da energia do meio ambiente para vitalizar o corpo. Apána está situado abaixo do tórax, na região coccígea, é o váyu responsável pelos processos de excreção e expulsão no corpo e é activado pela expiração.

O pránáyáma procura, sobretudo, unir estes dois váyus (prána e apána) através da inversão das suas direcções naturais no manipura chakra. Quando prána e apána se unem é estimulado o despertar da kundaliní e isso “proporciona resultados de particular importancia para la experiencia última del yoga.[5]. Segundo a Hatha Yoga Pradípiká “quando apána e o fogo se unem ao prána, quente por natureza, um clarão intensamente abrasador brota no corpo.”(III-67), “Kundaliní adormecida, aquecida por esse abrasamento, desperta. Tal como uma serpente tocada por uma vara, ela se levanta sibilando; e, como se entrasse em sua toca, entra na brahmánádí (sushumná, o canal central).” III-68,69).
Os outros três váyus principais são: samána, situado no plexo solar, na região do umbigo, e cuja função principal tem a ver com a digestão, alimentando o fogo gástrico; udána que actua na garganta e é responsável pela deglutição; vyána que tem como função distribuir a energia por todo o corpo e tem como função principal estimular a circulação sanguínea. Este é o váyu (ar vital) que interage e mantém a coesão dos outros váyus.
Existem ainda os chamados váyus secundários que governam outras funções do corpo, voluntárias e involuntárias, e que são: nága, responsável pelo soluço e pela erucção, kúrma, permite o pestanejar dos olhos, Krikara, produz a fome e a sede, devadatta, provoca o bocejo, dhananjaya elabora a decomposição do corpo após a morte.

“Que ele eleve todos estes váyus da raiz do abdómen por súrya-nádí; depois expire por ídá nádí lentamente e de forma continuada. Inspire outra vez pela narina direita, retenha como ensinado acima e exale. Faça-o repetidas vezes. Neste processo o ar é sempre inspirado através da súrya nádí. Súryabheda kúmbhaka destrói o envelhecimento e morte; desperta kundalí shakti; aumenta o calor corporal. Ó Canda, assim, ensinei o súryabhedana kúmbhaka.”(V, 66-68).”


Repare-se que em cima foi dada a indicação para se fazer o jalándhara bandha; agora para elevar a energia da raiz do abdómen. Sabemos ainda que o súryabheda práŠáyáma desperta kundalí shakti, que é outro nome para a kundaliní. Ora, relembrando o que foi dito acerca dos váyus, sobretudo prána e apána, podemos ver aqui a indicação para o uddiyana bandha e múla bandha sugeridas na descrição inicial que se deu do pránáyáma.
O uddiyana bandha consiste na retracção do abdómen até que o contorno das vértebras se desenhe na pele abdominal[6] e além de estimular a circulação propicia a subida do váyu apána – “Por este processo, o grande pássaro (alento) é instantaneamente forçado a subir por sushumná e move-se por ali apenas” Gheranda Samhitá III,10. O múla bandha também inverte o fluxo natural descendente do váyu apána. Associando este conhecimento ao que nos diz a Hatha Yoga Pradípiká corroboramos a válida utilização dos bandhas como se descreveu. Vejamos:
“Ao final de púraka deve-se praticar jalándhara bandha; e, ao final de kúmbhaka e no início de rechaka, deve-se fazer uddiyana bandha. Praticando-se jalándhara bandha, múla bandha e uddiyana bandha ao mesmo tempo (durante a expiração), o prána flui por sushumná. Impulsionando o apána para cima (com múla bandha) e fazendo descer o prána a partir da garganta (com jalándhara bandha), o yogi livra-se da velhice e torna-se um jovem de dezasseis anos.”(II, 45-47). Púraka é a inspiração, kúmbhaka a retenção e rechaka a expiração.
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Finalmente dir-se-á que o Súryabheda, à semelhança de outros pránáyámas como o bhástrika, podem ser especialmente úteis antes da meditação para os praticantes que, chegados a esse momento, sejam dominados por tamas (inércia ou letargia). Nesse caso, o pránáyáma torna a mente (chitta) mais alerta e menos dormente, o que é essencial para a prática do samyama (concentração, meditação e samádhi).



[1] Svátmáráma Yogendra, Hatha Yoga Pradípiká, Tradução de Pedro Kupfer, Instituto Dharma-Yogashala, 2002, Florianópilis, Brasil.
[2]Váta, que significa literalmente vento, é o dosha primário ou força biológica. É o poder de motivação por detrás dos outros dois doshas, que são incompletos ou incapazes de se mover sem ele.” David Frawley, Yoga & Ayurveda, Self-Healing and Self-Realization,1ª Edição, Lotus Press, 1999, Winsconsin, pag. 41. Sobre Ayurveda vejam-se os artigos já publicados nos Cadernos de Yoga.
[3] Tradução para o português feita pelo autor a partir de The Forceful Yoga, Being the Translation of Hathayoga-Pradípiká, Gheranda-Samhitá and Shiva-Samhitá, tradução para o Inglês de Pancham Sinh e Rai Bahadur Srisa Chandra Vasu, 1ª Edição, Motilal Banarsidas Publishers, 2004, Delhi, Índia.
[4] Theos Bernard ensinava que a distinção entre bandha e mudrá é meramente teórica e não deve causar nenhuma confusão, porque ambos são uma e mesma coisa. Veja-se Hatha Yoga, The Report of a Personal Experience, 4ª Impressão, Essence of Health Publishing, 2001, Africa do Sul, pag 60, nota nº 3.
[5] André Van Lysebeth, Pranayama, A la serenidad por el yoga, EdicionesUrano, 1985, Barcelona, pag. 250.
[6] Claro está que, se o bandha for utilizado no kúmbhaka (antar kúmbhaka) deve ser executado de forma mitigada em virtude de os pulmões estarem cheios. Ou seja, apenas se contrai o baixo ventre, abaixo da linha do umbigo, tal qual se faz na prática de ásana com o bandha.

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