segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Shítkarí, o pránáyáma nas escrituras clássicas do Hatha Yoga


Shítkarí, o pránáyáma nas escrituras clássicas do Hatha Yoga

por Miguel Homem





“A prática continuada desta técnica [shítkarí] torna o yogi belo como o deus do amor, Kámadeva.” Hatha Yoga Pradípiká, II-54. Sugestivo?!


            Começo por deixar uma descrição simples do shítkarí pránáyáma, aquele que produz o som shí:
a)         Fechar a boca, com os dentes juntos ou muito próximos, os lábios entreabertos e a língua levemente encostada por trás dos dentes (variações em relação à posição da língua são comuns);
b)         inspirar pela boca, fazendo o ar passar por entre os dentes e a língua;
c)         reter o ar e fechar a boca;
d)        expirar pelas narinas.

            Este pránáyáma, a par do shítalí, é um dos poucos em que se inspira pela boca. Normalmente a inspiração é sempre feita pelo nariz, o que permite que o ar através da passagem pelas narinas seja aquecido e limpo antes de entrar nos pulmões. Quando se respira pela boca os pulmões não têm esta protecção e, por este motivo, a prática de pránáyámas com inspiração pela boca deve ser feita em locais limpos, não poluídos e com a temperatura do ar agradável (e nunca quando está frio). Assim, este exercício não deve ser praticado por pessoas com problemas respiratórios como asma ou bronquite crónica.
Atribui-se a este exercício o poder de arrefecer o corpo, eliminar a fome e a sede. Também por isso deve ser praticado sobretudo no Verão. Em função do efeito de arrefecimento do corpo, o pránáyáma tende a induzir um estado de relaxamento.
Quando se usa o bhastriká pránáyáma no Verão, o que tende a aquecer ainda mais o corpo, o shítkarí é usado muitas vezes para contrabalançar aquela tendência e devolver o equilíbrio ao organismo.
Existem algumas variações quanto à posição da língua neste pránáyáma durante a inspiração. Foi-me ensinado pousar a língua entre os dentes (superiores e inferiores) ou nos dentes incisivos superiores. No primeiro caso, os dentes acabam por se afastar ligeiramente e a língua sobressai um pouco. Swami Satyananda Saraswati sugere ainda a hipótese de se deixar a língua dobrada para trás a pressionar o palato macio.
Por fim, uma palavra para a atenção que se deve manter na língua e sobre a retenção com ar (antar kumbhaka) que não necessita ser muito prolongada.

Vejamos, então, o que nos diz a Hatha Yoga Pradípiká[1]:
“Ao inalar produz-se um som sibilante, mantendo a língua entre os dentes; depois, exala-se pelo nariz. A prática continuada desta técnica torna o yogi belo como o deus do amor, Kámadeva.
Assim, ele se torna atraente para as yoginís, controla as suas acções, não sente fome, nem sede, nem se vê afastado pela sonolência ou pela preguiça.” (II-54,55)

            Aqui está a solução para muitos yogís com problemas de coração. E, à boa maneira yogí, de graça, acessível a todos e sem necessidade de mais feromonas além das que trouxeram de fábrica :)!
            Mas vejamos outro significado possível de Kámadeva, mais condizente com o sentido do Yoga. A palavra káma significa literalmente desejo, vontade, prazer, amor, gozo. Já a palavra deva traduzida comummente por deus, também tem o significado de título honorífico e pode significar “vontade de exceder ou superar”.

Assim, a palavra kámadeva pode significar aquele que supera o seu próprio desejo.

E supera não no sentido de rejeição mas no sentido que é livre do apego a ele. Esse é o Mestre, tão bem com, como sem...
            Vejamos agora outro significado possível para “ele se torna atraente para as yoginís”. Do original consta yoginí chakra sammányah que também se poderia traduzir como aquele que é respeitado e honrado pelo chakra de yoginís. A palavra chakra, de conhecimento mais comum, tem como um dos seus significados redemoinho de energia. Yoginí tem o significado comum de mulher que se dedica à vida de Yoga, mas no contexto específico das tradições tantricas, como é a do Nátha Sampradaya[2], também pode significar shakti, a energia. Como escreve o Swami Muktibodhananda[3]:

“O chakra de yoginís simboliza o funcionamento do corpo denso e subtil, as funções da mente e a integração com o Ser. Toda a nossa existência é controlada ou operada pelas várias formas de shakti, ou uma yoginí ou deví específica.
Assim, é dito que através da prática de shítkarí todo o corpo fica sob o domínio do praticante.”

           
Se analisarmos o que o texto nos diz em seguida, talvez encontremos um apoio:
“Com esta prática consegue força física e torna-se um mestre de Yoga, livre de todas as misérias terrenas.” (II-56).
A explicação para este efeito associado ao shítkarí pode estar exactamente no seu efeito refrescante. Como se sabe, a paixão e o desejo (sobretudo sexual) geram calor no organismo. Assim, o pránayáma seria uma forma de agir sobre a tendência latente. Não que exista algum mal na paixão e no desejo – não há – a haver mal ele está em ser escravo da paixão e dos desejos.
O texto diz mesmo bhavet sattvam cha dehasya sarvopadravavarjitah, que também se pode traduzir por “o sattva do seu corpo torna-se livre de todas as perturbações”. Assim, livre de perturbações, sattva[4], o equílibrio, repousa em si mesmo. Segundo Vyása, no seu comentário ao segundo dos sútras de Patañjali, o atributo de sattva é pra-khyá ou khyáti, a iluminação ou conhecimento da realidade. Então compreende-se bem porque o praticante que se mantem em sattva sem perturbações se torna um Mestre de Yoga.

Dos três textos que temos vindo a estudar – Hatha Yoga Pradípiká, Gheranda Samhitá e Shiva Samhitá - apenas a Hatha Yoga Pradípiká se debruça sobre o shítkarí pránáyáma. Os restantes textos limitam-se ao shítalí pránáyáma, que abordaremos noutra oportunidade.
Introduz-se, assim, outro texto à guiza de curiosidade: a Hatharatnávalí de shrínivásasa. Este é um importante texto do Hatha Yoga, mas não tão conhecido quanto os acima referidos. Estima-se que tenha sido escrito entre 1625 e 1695. Sabemos que o seu Autor era versado nos Vedas, Vedánta, Tantra, Nyáya e Yoga.
Vejamos então o texto:
“Deve-se inspirar sempre pela boca produzindo o som sít, reter o ar e exalar pelas narinas. Com esta prática o yogí tonra-se o kámadeva. Ele é respeitado pelo yoginí-chakra, torna-se capaz de criar e destruir e não sofre de fome, sede, sono e sonolência.
Mais ainda, através desta prática, o eminente yogí torna-se preparado fisicamente, permance livre dos sofrimentos mundanos e supera-se em vida.” II-16-18[5].

            Os originais sânscritos são quase iguais e sem dúvida shrínivása ter-se-á inspirado no texto de Svátmáráma Yogendra (a Hatha Yoga Pradípiká). A Hatharatnávalí pouco acrescenta em relação ao escrito anterior. Neste sentido, serve-nos mais como confirmação do que já antes havia sido postulado.
        


[1] Svátmáráma Yogendra, Hatha Yoga Pradípiká, Tradução de Pedro Kupfer, Instituto Dharma-Yogashala, 2002, Florianópilis, Brasil.
[2] Nátha sampradaya é a tradição original das escolas de Hatha Yoga e por isso aquela a que pertenceria Svátmáráma Yogendra, o autor da Hatha Yoga Pradípiká.
[3] Svátmáráma Yogendra, Hatha Yoga Pradípiká, Tradução e comentário de Swami Muktibodhananda, Yoga Publications Trust, 2004, Munger, Bihar, Índia, pag. 246 e 247. Tradução para o português do autor.
[4] Sattva é um dos gunas (guna significa qualidade, propriedade ou atributo) da Prakriti (mundo manifestado, matéria, natureza, substância cósmica). Os outros dois são tamasrajas. A diversidade e a complexidade da natureza devem-se à interacção, alteração e às variações desses três elementos. Assim, tamas significa inércia; rajas, movimento e sattva estabilidade. As suas funções são, respectivamente, a de limitar, a de ativar e a de manifestar a consciência através dos seus mais variados veículos. O guna sattva actua no homem como um estado de compreensão, satisfação, tranquilidade, reflexão, alegria e felicidade.
[5] Srínivásayogí, Hatharatnávalí, Tradução de Dr. M. L. Gharote, Dr. Parimal Devnath e Dr. Vijay Kant Jha, Lonavla Yoga Institute, 2002, Lonavla, Índia, pag. 47. Tradução para o português do autor.

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